A etnomatemática e a economia local: o conhecimento trivium dos pescadores da Costa da Caparica na Arte Xávega.

Autor: Nuno Vieira

 

Resumo

D’Ambrósio entende literacia como a capacidade de ler códigos e símbolos: a materacia, os processos mentais que decorrem desta aquisição de informação e, por fim, a tecnoracia, os instrumentos processuais que advêm dos anteriores. Partindo destas definições consideramos o conhecimento trivium como a aquisição e desenvolvimento destas competências, num determinado contexto, como será o caso de uma atividade profissional. A escola ensina a matemática ocidental, não privilegiando os saberes matemáticos das populações que servem, tornando o ensino desta disciplina hermético e estéril, na perspetiva dos alunos provenientes de determinados grupos sociais.

Nas artes da pesca, os processos de literacia estão associados à leitura de fenómenos naturais, como condições meteorológicas, do mar ou comportamentos animais, para a partir daqui tomar as decisões relativas à pesca, como momentos e locais para efetuar o lance.

As artes de pesca tradicionais têm contado com o conhecimento trivium dos pescadores para se manterem economicamente viáveis, particularmente numa localidade onde concorrem com o turismo pelo mesmo espaço de praia.

 

Palavras Chave: etnomatemática; literacia; materacia; tecnoracia; arte xávega

 

 

 

Revista Internacional de Educación para la Justicia Social

 

Ethnomathematics and Local Economy: Costa da Caparica fisherman’s trivium knowledge at the Xávega‏ art.

 

Nuno Vieira

 

 

Abstract

D’ Ambrosio understands literacy as the skill to read codes and symbols; matheracy, as the mental processes that arise from that acquisition of information and , finally, the technoracy, as the procedural instruments that come from literacy and matheracy. Based on these definitions we understand trivium knowledge as the acquisition and development of these skills in a given context, as it is the case of a professional occupation. School teaches Western mathematic , not focusing teaching processes on the mathematical knowledge of the populations they serve, making the teaching of this subject airtight and sterile on the perspective of students from certain social groups .

For fishermen, the processes of literacy are associated with the reading of natural phenomena, such as weather, sea conditions, or animal behaviour, and make their decisions related to fishing activities, like timing and places to go fish.

The arts of traditional fishing activity have depended on the trivium knowledge of fishermen to remain economically viable, particularly in a location where this activity competes with tourism for the beach space.

 

Keywords : ethnomathematics ; literacy; mathemacy ; technoracy ; Xávega art

 

 

 

Introdução

Como a investigação em etnomatemática tem demostrado, o pensamento matemática tem sido um elemento basilar na evolução das civilizações, tanto na produção de conhecimento como na evolução e otimização da atividade humana, embora estejamos a falar de uma matemática frequentemente sem expressões numéricas ou algoritmos. Facto é que matemática está subjacente à atividade humana e aos processos de produção, sejam eles artesanais ou industriais, pelo que o domínio destes conhecimentos constitui-se uma forma de poder. Estando o pensamento matemático presente em todas as culturas desde os tempos mais remotos e particularmente em ofícios de cariz manual, estará presente nas atividades de pesca tradicionais. Os pescadores, para construírem os seus barcos e as suas redes, sempre aplicaram conceitos matemáticos, que foram assimilando, aperfeiçoando e procurando perpetuar, passando-os aos descendentes da sua arte.

Os processos de transmissão de conhecimento entre gerações, numa cultura, são variados e anteriores à própria escrita, e entre os mais frequentes está a memória oral, o ritual das gerações mais novas ouvirem histórias contadas pelos mais velhos e os jogos (Vieira, 2013). No presente, a hegemonia da escola na transmissão de conhecimentos resulta, em grande parte, do domínio da memória escrita sobre a oral, que área da matemática terá contribuído para uma valorização da matemática escrita sobre os pensamentos matemáticos sem tradução escrita . Referimo-nos às técnicas de observação e reflexão, para entender, conhecer, explicar, inferir, respondendo à pulsão de sobrevivência e transcendência. Mas, os conceitos e os processos matemáticos sem tradução escrita encontram na escola um espaço reduzido, quando não são mesmo ignorados.

A investigação em etnomatemática, por outro lado, tem mostrado que a transmissão de conhecimentos matemáticos, dentro de grupos culturais, sociais ou familiares, ocorre independentemente do seu estádio de desenvolvimento ou nível de complexidade. Os processos de industrialização do séc. XIX levaram a que se estabelecesse uma relação entre o nível de conhecimentos matemáticos (a otimização, a dedução, a inferência), úteis em qualquer atividade produtiva, e o domínio da língua materna do trabalhador com a sua capacidade produtiva, pelo que os sistemas de ensino passaram a incorporar sempre estas duas vertentes no seu currículo.

Se é comummente aceite que após a revolução industrial o nível de desenvolvimento de uma sociedade decorre, em grande parte, do seu conhecimento científico e tecnológico, no qual a Matemática desempenha um papel central, então entende-se com alguma naturalidade que esta ocupe um lugar de destaque nas instituições escolares, e esteja presente na generalidade dos curricula, ocupando cargas horárias significativas. Facto acentuado pela convicção de que o desempenho da população nestas áreas, medido por testes internacionais padronizados, se relaciona com os índices de desenvolvimento de uma nação. Assim, a avaliação das políticas educativas, e do próprio sistema de ensino, está fortemente condicionada pela evolução dos resultados obtidos pelos alunos, em sucessivos testes. Mas, um pouco ao arrepio deste discurso, assente numa argumentação defensora das virtualidades da matemática e das ciências para o desenvolvimento de capacidades individuais como a otimização, o raciocínio ou a inferência, Kilpatrick (1999, p. 12) enfatiza que a Psicologia demonstra não haver uma relação estreita entre a inteligência, o desenvolvimento do raciocínio, e a aprendizagem da matemática. Estas capacidades são desenvolvidas, também, no desempenho de determinadas atividades profissionais que obrigam a raciocino, a inferências, à análise de dados e a dedução. Nomeadamente, os processos artesanais associados às artes de pesca são construções sociais, com fortes componentes matemáticas, que, uma vez adquiridas, facilitam a comunicação entre quem ensina e quem aprende ou entre quem comanda e quem executa. Assim, contribuirão para encarar-se de forma unívoca a resolução dos problemas, seguindo uma determinada ideologia: “ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica” (Freire, 1997, p. 122) mas, as ideologias estão normalmente ao serviço de interesses particulares, apresentadas como interesses universais (Bourdieu, 2001, p. 10). Como as relações de comunicação são inseparáveis das relações de poder, dependendo estas últimas da forma e do conteúdo do poder material ou simbólico acumulado pelos agentes ou pelas instituições envolvidas, os pescadores proprietários de barcos são portadores de um grande poder simbólico. “São enquanto instrumentos estruturados e estruturantes da comunicação e do conhecimento que os «sistemas simbólicos» [destaque do autor] cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica)” (Bourdieu, 2001, p. 11). Existe violência simbólica quando o mestre que ensina, ou o que que faz, não é entendido pelos que aprendem ou executam, e, analogamente quando o que o aprendente ou o executante diz ou faz não é entendido pelo mestre. Quando o mestre fala com o aprendente, e explicita um raciocínio, fá-lo com recurso a símbolos conceitos e definições que exigem o seu conhecimento prévio. Como particularmente os conhecimentos matemáticos estão, por norma, encadeados, se um aprendente ou executante deixa de acompanhar o ritmo imposto tem dificuldade em recuperar. E se o atraso for muito significativo torna-se praticamente irreversível, pelo que este acabará por não apreender as especificidades e condicionantes do ofício, não executando convenientemente as tarefas atribuídas com evidentes consequências.

 

O programa etnomatemática

As escolas têm características e modos de operar próprios, já que estão inseridas em realidades socioeconómicas e culturais diferentes, com populações escolares distintas. No entanto, na sua organização está presente um conjunto significativo de características comuns, resultado da história dos sistemas educativos. A denominada “gramática da escola” (Barroso, 1999, 2003; Formosinho & Machado, 2008; Gimeno Sacristán, 2008; Tyack & Cuban, 1995) tem inscrita a forma como se “divide o espaço e o tempo, se classifica os alunos em níveis e são dispostos por sala de aula, como se divide o conhecimento em áreas e como se atribuem classificações e prémios em resultado das evidências de aprendizagem” (Tyack & Cuban, 1995, p. 85). Trata-se da “pedagogia coletiva” (Barroso, 1999, p. 131), que tem na sua génese a uniformização de toda a estrutura educacional, a mesma que leva a que independentemente da localização da escola, das suas particularidades e especificidades, bem como dos interesses demonstrados pelos alunos, o professor tenda a ensinar o mesmo a todos, como se de um só se tratasse, nos mesmos períodos de tempo. É um princípio que por mais que se negue e renegue, continua na base da organização escolar e é evidente na distribuição dos alunos por turma que obedece à homogeneidade possível, quer em termos etários, quer do nível de conhecimentos, e, em certa medida, das condições socioeconómicas dos alunos. Este modelo de escola organizada em classes, que mantem uma demarcação entre o mestre que ensina e os aprendizes que ouvem sem questionarem a sua autoridade, embora tenha sido atacado desde a origem por alguns pedagogos, manteve a sua eficácia até ao momento em que a escola se abriu para todos. A massificação da escola, a inclusão escolar de todas as diferenças e peculiaridades, veio dificultar o processo de homogeneização das classes/turmas. A “escola real” (Tyack & Cuban, 1995), a escola que os alunos frequentam com os mesmos princípios de funcionamento que a que os seus pais e avós já frequentaram, e que estes têm como referência, com saberes categorizados em unidades curriculares, com um determinado número de tempos letivos por disciplina rigidamente regulados por um horário, que cadencia o ritmo das atividades desempenhadas, sem aparente articulação entre os saberes abordados em cada uma das unidades.

O calendário escolar divide o percurso dos alunos em segmentos de vária ordem: o período letivo, delimitado por interrupções letivas de verão, de Natal e de Páscoa; o ano letivo, marcado pelas férias de verão; e os quatro ciclos de ensino, primeiro, segundo, terceiro e ensino secundário. Para cada um destes segmentos é estabelecido término marcado por um momento de avaliação e, nalguns casos, uma prova de exame nacional. Estes momentos de avaliação “têm a tríplice função de indicar se o indivíduo atingiu o nível estatutário, de garantir que a sua aprendizagem está em conformidade com a dos outros, e diferenciar as capacidades de cada indivíduo” (Foucault, 1977, p. 143), estando previstos «castigos» para os casos em que os resultados se afastam dos definidos como «mínimos». Esta organização dos sistemas de ensino encontra, para Foucault, espelho na organização dos quartéis, também assentes nesta lógica de séries. Aqui não para atingir um grau académico mas igualmente para progredir numa estrutura hierarquizada, a militar. Salientamos que o termo progressão é utilizado em ambas as organizações para denominar a passagem de uma série para a seguinte. Foucault salienta que ainda se podem “estabelecer séries de séries” (1977, p.143), definidoras do tempo de permanência em cada um, o que também define uma posição estatutária. Mais concretamente no ensino da matemática, não apenas estão estabelecidas as séries (períodos e anos letivos), as séries de séries (os ciclos de ensino), a avaliação no termo de cada série, com ou sem exame nacional, os castigos quando não são cumpridos objetivos mínimos, como também está enraizado um princípio de precedência, que tende a considerar que se um aluno não tem sucesso numa determinada série, dificilmente terá sucesso nas que se sucedem, ficando vulnerável à aplicação de «castigos». Neste mesmo sentido encontramos o «preconceito» de que apenas as mentes inteligentes, as de nível intelectual superior, estão aptas a seguir optar por um percurso escolar em áreas do conhecimento com uma forte componente em matemática. Os próprios professores da disciplina alimentam e acentuam a ideia de que a matemática é “misteriosa e difícil” (Kilpatrick, 1999, p. 16).

Mas, o professor de Matemática é antes de mais um educador, que, enquanto ensina, promove valores e transmite aos alunos uma visão do mundo. Assim, fará sentido “falarmos de uma «matemática dominante», que é um instrumento desenvolvido nos países centrais e muitas vezes utilizado como instrumento de dominação. Essa matemática e os que a dominam se apresentam com postura de superioridade, com o poder de deslocar e mesmo eliminar a «matemática do dia-a-dia»” (D’Ambrosio, 2013, p. 49). É de salientar que a matemática vai para além das especificidades das disciplinas escolares, organizadas em «séries», e independentemente da duração que as definem. Pode estar, também, associada à busca da justiça social, segurança e tranquilidade, podendo quem ensina matemática subordinar a sua ação a “uma ética maior ancorada em três vertentes: 1 – respeito pelo outro com as suas diferenças; 2 – solidariedade com o outro, reconhecendo sua essencialidade; 3 – cooperação com o outro, reconhecendo que sozinhos não podemos lidar com situações e problemas globais” (D’Ambrosio, 2013, p. 45). Efetivamente, os conhecimentos matemáticos de grupos sociais ou culturais, como os pescadores, não são entendidos pelos que têm nas instituições de ensino uma conceção de “escola real” (Tyack & Cuban, 1995), logo não a valorizando, nem, tão pouco, lhe conferindo importância ou utilidade. Contrariamente à matemática ensinada nas escolas de matriz ocidental, os conhecimentos matemáticos de grupos sociais, como os pescadores dedicados às artes de pesca tradicionais, são de assaz importância para o desenvolvimento de um programa etnomatemática, conforme proposto por D’Ambrosio. Este é “um programa de pesquisa que teve sua origem na busca de entender o fazer e o saber matemático de culturas não originados das europeias e de classes populares, muitas marginalizadas, numa mesma sociedade, onde classes diferentes se encontram e há uma dinâmica de encontro de saberes e fazeres dessas classes. Faz parte desse programa de pesquisa entender o intercultural a dinâmica da evolução de fazeres e saberes que se encontram, mas somos igualmente levados a questionar o intra-cultural, numa mesma sociedade” (D’Ambrosio, 2013, p. 46).

Não podemos deixar de salientar que o termo etnomatemática, neste contexto, se distingue dos estudos em etnomatemática que se visam identificar elementos matemáticos em manifestações culturais, artesanais e tradicionais, próprias de um povo ou de uma cultura, usando como instrumento de análise a matemática ocidental. O programa etnomatemática assenta nas categorias identitárias de cada cultura ou grupo cultural, no que lhe é próprio e característico, podendo mesmo definirem-se características que lhes são únicas, mesmo associadas às mais elementares necessidades de subsistência, em harmonia com o local geográfico, físico e humano, onde se inserem e onde vivem. Esta necessidade de “sobrevivência e transcendência leva o ser humano a desenvolver modos, maneiras, estilos de explicar, de entender e aprender, e de lidar com a realidade percetível” (D’Ambrosio, 2013, p. 47).

Ainda na perspetiva de D’Ambrosio, a matemática deverá ser o “modo de pensar mais universal” (2007, p. 25) de que o homem dispõe[1]: sendo o pensamento matemático o motor da ciência e da tecnologia deverá sê-lo também, da educação para a paz, e um caminho para a resolução de problemas, nomeadamente os que decorrem dos desequilíbrios sociais e das perturbações nos ecossistemas, fortemente marcados pelas taxas de consumo dos recursos materiais e energéticos. Assim, o estudo e a compreensão dos factos históricos da matemática devem nela estar presentes de uma forma sustentada: uma disciplina é a sua epistemologia. “É importante conhecer a evolução da etnomatemática como resposta ao curso perigoso da humanidade em direção à destruição da dignidade individual, das relações sociais tensas e violentas, das relações com o ambiente inviáveis e o aumento dos confrontos armados” (D’Ambrósio & Rosa, 2008, p. 99). O reconhecimento da validade dos modos como o outro conta, mede, calcula, infere, localiza, representa, joga é um caminho sustentável para a equidade e para tolerância entre os povos.

O Programa Etnomatemática resulta de uma visão transdisciplinar e transcultural do conhecimento. Todos os povos, pensados como a mesma espécie humana, e todas as culturas, pensadas como integrando uma civilização planetária, exigem um novo pensar e um novo relacionamento de saberes e de fazeres que muitas vezes se manifestam diferentemente. (…) as novas relações internacionais e a intenção de recuperar a dignidade cultural de todos os povos, manifesta na Declaração Dos Direitos Humanos, exige o diálogo intercultural e interdisciplinar. Esse é o primeiro passo para o pensamento transcultural e o conhecimento transdisciplinar. A transculturalidade e a transdisciplinaridade possibilitam a sobrevivência, com dignidade, da espécie humana. Isso é anti-positivista. O Programa Etnomatemática é representativo desse novo pensar. (D’Ambrosio in Vieira, 2008, p. 168).

 

D’Ambrosio chama, ainda, a atenção para algo que todos sabemos: o facto da sobrevivência da humanidade estar dependente da sua relação com a natureza, relação essa regulada por princípios culturais e ecológicos que não raras vezes, ao longo da história contribuíram “para o conflito que se desenvolve, para o confronto, a violência e a subjugação do outro e da natureza” (D’Ambrósio & Rosa, 2008, p. 101). A demanda contra o conflito e a violência pode ser bem‑sucedida se existir partilha na distribuição do conhecimento e dos recursos que a natureza oferece. É este o caminho apresentado por D’Ambrosio, para “nos conduzir a uma civilização planetária, com paz e dignidade para toda a humanidade” (D’Ambrósio & Rosa, 2008, p. 109). E nele a educação matemática surge como um meio de comunicação e uma ferramenta úteis e eficazes para a distribuição e gestão dos recursos. O que justifica o papel central das ideias matemáticas em todas as civilizações é o facto de ela fornecer os instrumentos intelectuais para lidar com situações novas e definir estratégias de ação (D’Ambrosio, 2013, p.49), e, efetivamente, os pescadores de Arte Xávega da Costa da Caparica evidenciam ideias matemáticas construídas e passadas de geração em geração.

O processo educativo tem também a seu cargo a tarefa de articular o velho com o novo, harmonizando o passado e o futuro. Não se deve descurar a tradição e os valores estabelecidos no passado, que nos caracterizam e nos conferem a identidade, mesmo tendo em mente a preparação para o futuro, estimulando a criatividade e a inovação. Assim, a educação matemática é, também, uma questão política. A sociedade tem avançado no sentido da valorização dos números, seja na forma de estatísticas, que ao serem conhecidas condicionam a opinião pública e a individual, seja na economia de mercado, sustentada na matemática, seja na quantificação de tudo, onde se tenta traduzir tudo em valores numéricos, com o intuito de seriar e estabelecer rankings. É assim que se colocam aos sistemas de ensino novos desafios. Estes não podem ficar mais pelo velho objetivo de ensinar a ler, escrever e contar[2]. Preparar os jovens para uma cidadania plena implica, da parte dos professores de Matemática, nomeadamente, que assumam que “a Matemática pode ajudar os jovens no comprometimento com as suas obrigações, na promoção da equidade e da democracia, da dignidade e da paz, para toda a humanidade” (D’Ambrosio, 1999, p. 131). Este compromisso, que D’Ambrosio advoga para a matemática e os professores, deverá ser partilhado por todos os professores, de todas as disciplinas. É aqui que D’Ambrosio  (D’Ambrosio, 1999, 2001, 2005) propõe um novo currículo para as escolas, o Currículo Trivium, constituído por “literacia, materacia e tecnoracia, que responde às necessidades da época que agora está a emergir” (D’Ambrosio, 2001, p. 133). Assim, temos que:

literacia é a capacidade de processar informação escrita e falada, o que inclui leitura, escrita, cálculo, diálogo, ecálogo, mídia, internet na vida cotidiana (instrumentos comunicativos); materacia é a capacidade de interpretar e analisar sinais e códigos, de propor e utilizar modelos e simulações na vida cotidiana, de elaborar abstrações sobre representações do real (instrumentos intelectuais); tecnoracia é a capacidade de usar e combinar instrumentos, simples ou complexos, inclusive o próprio corpo, avaliando suas possibilidades e suas limitações e a sua adequação a necessidades e situações diversas (instrumentos materiais) (D’Ambrosio, 2005, p. 119).

Literacia é, então aqui entendida como a capacidade de ler e escrever em sentido lato, não apenas de traduzir caracteres sequenciados, mas de analisar, processar e interpretar informação que nos pode chegar através das mais variadas formas de comunicação, como a musical, a gestual ou a sensorial. Na verdade, com a crescente importância social dos números, grande parte da informação chega-nos sob a forma de linguagem matemática, pelo que a escola deve fornecer ao indivíduo as ferramentas necessárias para a sua leitura crítica. O indivíduo deve ser capaz de, a par da análise de sinais e códigos, inferir, propor hipóteses e tirar conclusões, aquilo a que D’Ambrosio denomina de materacia, segunda componente do currículo trivium, “materacia é a mais profunda reflexão acerca do homem e da sociedade e não deveria ser restringida às elites, como tem sido no passado” (D’Ambrosio, 2007, p. 29). Por fim, temos a terceira componente – tecnoracia – que pressupõe um domínio crítico na seleção, adequação e utilização das ferramentas tecnológicas nas mais diversas situações, uma vez que a “história nos mostra que a ética e os valores estão intimamente relacionados com o progresso tecnológico” (D’Ambrosio, 2007, p. 29).

Então, o currículo escolar deverá ser construído com objetivo de ajudar os alunos a desenvolverem um sentido crítico face ao mundo que os rodeia, e proporcionar‑lhes os instrumentos intelectuais necessários para a sua compreensão plena, que engloba, naturalmente, as áreas científicas e as tecnológicas. Os professores têm, de facto, o

poder simbólico de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e (…) a ação sobre o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física e económica), graças ao efeito específico de mobilização. Só se exerce se for «reconhecido» (Bourdieu, 2001, p. 14),

Os alunos são cidadãos do Mundo, devem compreendê-lo e nele viver de forma consciente no exercício da sua cidadania, pelo que os conhecimentos matemáticos aprendidos, formal ou informalmente, têm uma assaz importância. Mas, para tal não deverão ser transmitidos de forma estéril e acrítica.

 

O Conhecimento trivium

O currículo trivium proposto por D’Ambrosio, se ensinado na escola poderá favorecer a valorização da escola e dos conteúdos matemáticos aí abordados. Porque procura uma tradução dos conceitos estudados no quotidiano dos alunos, enquanto membros de uma comunidade, onde os conhecimentos adquiridos por via informal, no dia-a-dia no ceio da sua comunidade encontram igualmente um correspondente na escola. Para isto, contribui o facto de as competências inscritas no currículo trivium, recordamos literacia, materacia e tecnoracia, não se limitarem a ser aprendidas em ambiente escolar, e muito menos são competências trabalhadas exclusivamente pelas áreas da matemática. O desempenho de tarefas do quotidiano ou intrínsecas a determinadas atividades profissionais também as desenvolverá de forma igualmente eficiente, daí afirmarmos que as literacia, materacia e tecnoracia, são competências adquiridas, constituindo-se o corpo do conhecimento trivium. Este conhecimento também é construído desempenhando de uma arte ou ofício (Vieira, 2013). No desempenho de uma tarefa, a “…REALIDADE informa o INDIVÍDUO que processa e executa uma AÇÃO que modifica a REALIDADE que informa o INDIVÍDUO… [destaque do autor]” (D’Ambrosio, 2001, p. 57). Centrando-nos no exemplo da pesca com Arte Xávega, o mestre da companha, em primeiro lugar tem de decidir se o seu barco sai para o mar, para fazer um lanço. A decisão está dependente da perceção das condições de mar e meteorológicas, se são propícias à atividade de pesca sem risco para os pescadores e para o equipamento. Fá-lo, olhando para o mar e para as condições ambientais: «lê» o que o ambiente lhe vai dizendo, infere – materacia – o significado da informação apreendida, para de seguida atuar em conformidade – tecnoracia. Numa entrevista concedida no âmbito do Projeto Fronteiras Urbanas, António Cardoso (Alemão) um pescador da Costa de Caparica de 83 anos de idade, enquanto remendava redes, ao «ver» a evolução das condições meteorológicas, afirmou “já está mau para eles irem para o mar [materacia]… Está neve [literacia]… Quando vocês chegaram, estava bom [literacia]” (testemunho de António Cardoso no âmbito do Projeto Fronteiras Urbanas, PTDC/CPE_CED/119695/2010). A «neve» a que este pescador se refere traduz o fenómeno meteorológico de condensação da humidade do ar, resultante da chegada de uma massa de ar frio vinda de norte. Este vento de norte, não apenas provoca a condensação da humidade do ar, visível em terra mas sem implicações significativas na pesca, como também provoca um movimento da massa de água superficial no sentido de terra para o mar, criando correntes marítimas e ondulação, por ação da força de coriolis, gerando condições eventualmente adversas à pesca por arte xávega. Os pescadores, ao longo dos tempos, foram desenvolvendo e transmitindo os seus conhecimentos aos mais novos. Aprenderam a ler o que a Natureza lhes diz, aprendem a interpretar o significado das mensagens, para então atuar em conformidade: decidem quando e onde fazer sair os barcos, em que condições, com que artes, para que tipo de captura, apuraram as técnicas de construção de redes, o modo de as lançarem ao mar, a melhor forma de as enrolar para ficaram prontas a realizar um novo lanço.

O clássico esquema de comunicação poderá ser traduzido por “quem diz o quê a quem e por que meio” (Leyens & Yzerbyt, 2004, p. 101) e enforma genericamente as dinâmicas na transmissão de conhecimento. Nos processos de ensino-aprendizagem, sempre mútuos e recíprocos, quem aprende, o aluno, (tomando num sentido lato) recebe permanentes mensagens de quem ensina, o professor (também num sentido lato, podendo ser uma pessoa ou qualquer entidade que emite informação). Mas, para que uma mensagem seja efetiva, é crucial que o interlocutor esteja atento e saiba descodificar a mensagem, só então poderá passar à fase seguinte do processo de comunicação, analisar os argumentos apresentados, podendo então adequar a ação aos interesses e necessidades. “Quando as pessoas recebem uma mensagem nova verifica-se uma modificação na sua estrutura atitudinal. Esta tese é uma consequência direta da teoria da aprendizagem: as pessoas serão tanto mais suscetíveis de apreender uma mensagem quanto mais ela lhes trouxer benefícios ou evitar consequências lastimáveis” (Leyens & Yzerbyt, 2004, p. 102). Face a uma mensagem verdadeiramente persuasiva o interlocutor raramente fica sem reação, não assume uma atitude acrítica, antes tornando um elemento indutor de mudança. Por tudo isto, a ação do aluno é subordinada não apenas aos argumentos contidos na mensagem, mas também pelo conhecimento trivium por si adquirido. Através de um processo empírico, a partir da análise regular e sistemática das atitudes do aluno face ao que lhe é dito e proposto, estará continuamente a adquirir e a desenvolver novas competências de literacia, materacia e tecnoracia. Ao receber a informação que lhe é transmitida, o aluno vai «lê-la», interpretá-la, fazer inferências e tirar conclusões, e implementar procedimentos consentâneos. Este conhecimento trivium, adquirido com os anos e com a experiência, são transmitidos entre gerações, pelo que não será de estranhar que alguns pescadores mais novos (geralmente filhos ou netos de pescadores e mestres de companhas) tenham criado as suas próprias companhas (Vieira & Silva, 2014, pp. 73-74).

A evolução tecnológica e o desenvolvimento económico do país trouxe, naturalmente, novos desafios a que os pescadores se foram adaptando aprendendo a «ler» o mundo em que vivem e a ensaiarem novas soluções, «vendo» os resultados (literacia), avaliando, inferindo novas hipóteses que permitissem obter melhores resultados (materacia) e implementando-as (tecnoracia). Como exemplo deste exercício recursivo de construção do conhecimento trivium está a introdução de motores nas embarcações e a substituição das tradicionais redes de algodão por nylon, a que se associou passarem a ser puxadas por aladores mecânicos acoplados a tratores.

Os barcos tradicionais da arte xávega, os meia-lua (eram barcos que quando vistos de lado têm a forma de meia lua), têm o bojo encurvado da popa à proa, tornando-as elevadas para, assim, vencerem a rebentação. Têm, igualmente, uma quilha pronunciada para conferir estabilidade e não virarem com a força das ondas e os «golpes de mar». Estes barcos são muito pesados e, como são movidos a remos, requerem um número significativo de membros embarcados. Com a possibilidade de se introduzirem motores nos barcos, rapidamente constataram que estes teriam de ser adaptados, e foram-se introduzindo alterações até que, no presente, recorrem a barcos de fundo chato e motores fora de borda, aumentando também a segurança dos pescadores: “a lancha é mais larga, aguenta-se mais” (testemunho de Mário Raimundo no âmbito do Projeto Fronteiras Urbanas, PTDC/CPE_CED/119695/2010). Mesmo tratando-se de embarcações de fundo chato, são mais largas e a potência dos motores fora de bordo permitem mais facilmente vencer os «golpes de mar», permitindo, também, reduzir o número de homens que integram uma companha, e o esforço físico exigido a cada também é menor. Fatores como o número de homens necessários para a constituição da companha, a dimensão da embarcação ou o tamanho das redes foram sendo otimizados através de um pensamento matemático, sustentado pelo conhecimento trivium dos decisores, os proprietários dos barcos e mestres da companha. De forma recursiva foram lendo os factos (literacia), fazendo inferências e tirando conclusões (materacia), para implementarem novas técnicas (tecnoracia), voltado a ler o resultado.

A constante redução do rendimento auferido com a pesca e, em dado momento, também cada vez menor mão-de-obra disponível (literacia) contribuiu para que os mestres procurassem novas soluções (tecnoracia) que lhes permitisse subsistir. Contudo, a atividade da pesca é sentida por muitos como algo de que não podem nem se querem separar. Amam o mar e a pesca, e mesmo quando deixam de ter condições físicas para embarcar e realizar tarefas mais pesadas, aplicam os seus conhecimentos e experiencia na manutenção e construção das redes das respetivas companhas. “É uma profissão muito bonita, muito mal remunerada mas muito bonita Temos uma sensação de liberdade, o mar é lindo, tudo isto é muito bonito” (testemunho de Mário Pedro no âmbito do Projeto Fronteiras Urbanas, PTDC/CPE_CED/119695/2010). No entanto Mário Raimundo (testemunho no âmbito do Projeto Fronteiras Urbanas, PTDC/CPE_CED/119695/2010, mestre de outra companha, relativamente aos seus dois filhos salienta “não quero cá ninguém… passar  frio, passo eu”.  Não quero que ela [referindo-se à filha sem emprego] passe frio, já basta eu estar a passar frio”. A dureza da profissão e esta preocupação, legítima, de proporcionar aos filhos uma vida melhor, foi afastando as pessoas da profissão de pescador.

A outra alteração significativa na Arte Xávega resultou, na década de 80 do séc. XX, da introdução de tratores com aladores mecânicos para puxarem as redes, que até então eram puxadas à mão por dezenas de homens e mulheres, a partir do areal. Os aladores mecânicos, associados à introdução do nylon permitiram fazer redes maiores e mais pesadas: “as artes eram mais leves tinham menos malhagem que era para puxar a cinto, agora estas são para puxar a trator” (testemunho de António Silva Cardoso no âmbito do Projeto Fronteiras Urbanas, PTDC/CPE_CED/119695/2010). Atendendo a que as redes são construídas pelos próprios pescadores, não havendo duas iguais, estas alterações forçaram a que os mestres as fossem adaptando à nova realidade. Foi necessário ajustar a dimensão dos vários segmentos que constituem a rede, de incrementar e otimizar a quantidade de chumbo para que afundasse o suficiente para arrastar no fundo, mas que não se tornasse demasiado pesada. “Nós hoje pescamos com métodos totalmente diferentes do que pescávamos há vinte ou trinta anos atrás. Nós estávamos habituados a um esforço de trabalho enorme, as redes… era tudo puxado à mão, não havia motores era tudo a remos” (testemunho de Lídio Galinho no âmbito do Projeto Fronteiras Urbanas, PTDC/CPE_CED/119695/2010). Mais uma vez, salientamos a presença do conhecimento trivium neste processo mental, etnomatemático, de otimização desenvolvido pelos mestres das embarcações.

Há, no entanto fatores externos à atividade piscatória que a influenciam sobremaneira. As decisões políticas do poder local privilegiam o turismo em detrimento de outras atividades económicas, e nomeadamente a piscatória. A Costa da Caparica é uma zona que tem no turismo um importante valor económico, valor que os pescadores também não pretendem ver desaproveitado, pelo que procuram manter o equilíbrio entre as tradições (enquanto valor turístico) e a implementação de soluções tecnológicas que permitam incrementar o seu rendimento económico, inseridos numa economia de mercado global. Desta forma, ainda se avistam embarcações meia-lua da Costa da Caparica, cuidadas e preservadas por alguns pescadores. Não que sejam economicamente rentáveis, mas os pescadores sabem que a arte xávega apenas poderá sobreviver enquanto arte tradicional.

Numa outra dimensão, de caráter mais político, a partilha do espaço entre os pescadores e os turistas nem sempre é fácil, ficando nos pescadores um sentimento de impotência por se sentirem relegados para a base da pirâmide social. Mário Pedro, um pescador entrevistado no âmbito do Projeto Fronteiras Urbanas (PTDC/CPE_CED/119695/2010), enquanto remendava redes no areal, salientava: “nós, entretanto, encontramos também uma dificuldade imposta pelo homem, pelas leis, pelo governo, pelas autoridades, que nos proíbem de pescar em certas zonas… nunca compreendemos o porquê disso”. Efetivamente a legislação em vigor proíbe a circulação de tratores e de barcos no areal durante o período balnear, nas praias concessionadas, o que se traduz na proibição de pescar entre as 8h00 e as 18h30. A capacidade de captura em quantidade e em qualidade de pescado com valor comercial ficou significativamente condicionada. “Só se pode pescar no verão, por causa do mar: dificuldade imposta pela natureza”(testemunho de Mário Pedro no âmbito do Projeto Fronteiras Urbanas, PTDC/CPE_CED/119695/2010 Outrora, os nomes atribuídos aos lances, resultavam da orografia do terreno de onde os barcos estavam estacionados e saíam para o mar: “era tudo marcado por terra” (Mário Pedro). Ao longo do ano deslocavam-se para zonas distintas que dependia de

onde [a pesca] estava a dar (…). A costa para o Norte sempre foi mais rica que para o Sul, o mar é mais baixinho [conhecimento trivium]. O peixe branco vem à procura das ondas [que revolvem o fundo], que é para ir à procura de isca”. Na zona onde atualmente há grandes limitações à pesca, por serem zonas concessionadas, não se pode pescar, porque foi ocupado pela frente urbana. “A costa não foi formada aqui por acaso. É que havia aqui uma enseada (…) quando estava bera, agradava mais sair ao mar. E ali [no atual largo Vasco da Gama], chamavam-lhe o alto. Era onde [os mestres] iam ver o mar… ver os alcatrazes a cair… agora não há nada, é sair ao mar e pescar. (Mário Pedro).

 

Entre o pescado capturável pela arte xávega economicamente mais rentável estará a sardinha e a lula, que apenas podem ser pescadas durante o período de luz. As decisões políticas e a legislação em vigor não consideram este facto, que condiciona fortemente a rentabilidade económica da pesca pro Arte Xávega na zona da Costa da Caparica. A proibição de pescar na zona marítima da frente urbana da Costa de Caparica interditou aos pescadores  uma “zona (…) zona riquíssima de pesca. E portanto ao sermos proibidos de pescar naquela zona, nós pescadores fomos altamente prejudicados…” (testemunho de Lídio Galinho no âmbito do Projeto Fronteiras Urbanas, PTDC/CPE_CED/119695/2010). Durante a época balnear, que decorre entre maio e setembro (definida anualmente por legislação específica), o período de pesca é fortemente condicionado, como já foi referido, e no restante período do ano, é muito frequente que as condições de mar não permitam que os barcos se façam ao mar. Acresce que nas áreas não concessionadas não existem corredores de acesso à praia para os tratores, barcos e respetivas companhas. Quando associado a este facto, se associa o encerramento da Docapesca[3] em Pedrouços e a necessidade de intermediários, para comercializarem o pescado, a rentabilidade económica da pesca artesanal ficou fortemente condicionada: “ao fecharem a Docapesca de Lisboa foi a grande machadada que deram nos pescadores locais e também nacionais, ficámos sem porto de abrigo, tínhamos uma lota a funcionar 24 horas sobre 24 horas, em que nós podíamos pescar durante a noite toda, durante o dia todo e sabíamos que o nosso peixe ia ser escoado.” (testemunho de Lídio Galinho no âmbito do Projeto Fronteiras Urbanas, PTDC/CPE_CED/119695/2010). Por outro lado, o preço do pescado na lota é manipulado pelos intermediários no sentido de comprar o peixe na lota a baixo preço, para potenciarem os seus lucros. “Hoje há uma disparidade muito grande entre o pescador e o consumidor. Nós vendemos muito barato, quem consome, compra muito caro” (Lídio Galinho). Ao nível da legislação internacional, uma vez esgotadas as quotas de determinadas espécies de peixe, pelo maior volume de capturas da pesca industrial, a pesca artesanal e local fica impossibilitada de as comercializar, devolvendo-as diariamente ao mar, apesar de desenvolverem um esforço de pesca irrelevante, quando comparado com as quotas definidas para os países da União Europeia. (Vieira & Silva, 2014).

 

Conclusão

Embora seja já um lugar‑comum afirmar que a educação tem como função preparar o indivíduo para uma cidadania plena, criando as condições para que cada um possa maximizar o seu potencial criativo e adquirir e desenvolver as suas capacidades, o papel da matemática académica, nos últimos anos, tem vindo a contrariar este desidrato. Tem vindo a ser cooptada pela necessidade de treinar os alunos no sentido de melhorar o seu desempenho em testes padronizados, como o TIMSS ou o PISA (esta «necessidade» dos sistemas educativos relaciona-se com a associação feita entre os níveis de desempenho dos alunos e a capacidade produtiva dos países). Perdem-se, desta forma, aquelas que consideramos deverem ser as funções primeiras dos sistemas educativos, como o desenvolvimento da autoconfiança e a aquisição de conhecimentos e competências essenciais ao exercício de uma cidadania plena.

A Matemática ensinada nas escolas é, efetivamente, um pilar das sociedades atuais. Mas a forma como está estruturada torna-a inútil na perspetiva de determinados grupos sociais, como será o caso dos pescadores. Acresce que a forma como é ensinada pode afastar a escola dos seus interesses e prioridades pessoais, contribuindo para o agudizar da descriminação social, embora não seja facilmente reconhecido pelos decisores políticos, a nível local ou nacional. O argumento «não ser bom a matemática» serve, por vezes, o propósito de justificar as opções tomadas para o percurso académico do aluno, ou, em certos casos, de fundamentação para um abandono escolar precoce. Com este estudo não podemos afirmar que os pescadores da Costa da Caparica tenham desenvolvido uma matemática, pelo menos na forma como o mundo ocidental a entende e é difundida nas, e pelas, escolas. Desenvolveram, sim, estilos de observar, de classificar, de ordenar, de quantificar, de medir, de inferir, que são categorias de conhecimento dos comportamentos humanos. Desenvolveram a sua etnomatemática que lhes permite subsistir numa sociedade de mercado, onde a industrialização e o desenvolvimento do turismo, impõem fortes condicionalismos na viabilidade económica. “Naturalmente, em todas as culturas e em todos os tempos, o conhecimento é gerado por indivíduos e povos que têm, ao longo de suas existências e ao longo da história, criado e desenvolvido técnicas de reflexão, de observação, e habilidades (artes, técnicas, techne  ticas) para explicar, entender, conhecer, aprender para saber e fazer como resposta a necessidades de sobrevivência e de transcendência (matemá), em ambientes naturais, sociais e culturais mais diversos (etnos)” (D’Ambrosio, 2013, p. 47). Os pescadores de arte Xávega da Costa da Caparica adquiriram, e continuam a desenvolver um conhecimento trivium que lhes permite hibridizar as suas tradições, o «velho», com a sociedade de mercado e uma aposta do poder político no turismo, o «novo». Este seu conhecimento de literacia, materacia e tecnoracia, desenvolvido ao longo de gerações permite-lhes manter economicamente viável a Arte Xávega, enquanto arte de pesca tradicional.

 

 

 

 

 

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[1] O disco de cobre revestido a ouro que a sonda espacial Voyager transporta, como cartão-de-visita para outras formas de vida que surjam no seu caminho, tem gravado símbolos numa linguagem puramente matemática. Os responsáveis da NASA acreditaram que esta será a única linguagem que pode superar o problema da incomensurabilidade entre civilizações. A NASA disponibiliza fotografias desta placa na sua página: http://voyager.jpl.nasa.gov/spacecraft/scenes.html (consultado em 10 de julho de 2011).

[2] Os termos ler, escrever e contar, resultam do sistema americano que desde a sua fundação seguiu o lema dos três R’s (Reading wRiting e aRithmetic) (D’Ambrosio, 2001, p. 65).

[3] Entreposto comercial destinado ao leilão do pescado, permitindo a venda direta do pescador aos grandes consumidores, nomeadamente  cadeias de supermercados e restaurantes.