Arquivo de etiquetas: Disseminação

Colloque internationale: Cultures, éducation, identité: recompositions socioculturelles, transculturalité, interculturalité

Curriculum Trivium, dialogue interculturel et citoyenneté

Une ethnographie critique d’un projet d’éducation communautaire

Isabel Freire

Ana Paula Caetano

Mônica Mesquita

Resumé

Dans cette communication, nous partons de l’expérience de rencontre interculturelle entre les trois communautés différentes – l’équipe de recherche universitaire et deux collectivités de une même ville (une communauté de pêcheurs et une autre vivant dans un bidonville), qui sont liés par le développement du projet scientifique appelé «Frontières Urbaines: la dynamique des rencontres culturelles dans l’éducation communautaire». C’est un projet d’éducation communautaire, soutenue par une vision transdisciplinaire de la connaissance, a comme référentiel  théorique le concept de curriculum trivium, qui vise à promouvoir la pleine citoyenneté et la justice sociale (D’Ambrosio, 2009). Ce nouveau concept de curriculum reprend le concept de pédagogie critique de  Freire (1980). A travers d’unerecherche d’ethnographie critique (Thomas, 1993), ce projet vise à entendre les voix trouvées dans les communautés multiculturelle, pour comprendre les dimensions intra et interculturelles (Abdallah-Pretceille, 2005), pour clarifier les processus éducatifs et promouvoir la reconnaissance de ces communautés par la société dans son ensemble, en tant que partie intégrante de cette société. De l’analyse des processus de dialogue et de participation vécus par les communautés, nous discutons des concepts d’inter et de transculturalité.

Mots-clés: curriculum trivium, rencontres interculturelles, transculturalité, interculturalité, éducation communautaire.

Introdução à problemática

A apresentação desta comunicação apoia-se no processo de investigação realizado no âmbito do Projet «Frontières Urbaines (Fronteiras Urbanas): la dynamique des rencontres culturelles dans l’éducation communautaire » [FU][1]. Três postulados subjazem à conceção e desenvolvimento deste projeto :

  • tous les peuples font partie d’une civilisation planétaire et les rencontres culturelles enrichissent tout le monde (Morin, 2002);
  • a recuperação da dignidade cultural de todos os povos exige o diálogo transcultural e transdisciplinar (D’Ambrósio, 1999);
  • o diálogo é uma condição existencial (Freire, 1980).

É através da educação que estas ideias/ideais humanos tomam forma. O projeto FU surge, assim, da vontade de desenvolver ações concertadas com vista a uma educação comunitária. Ou seja, uma educação que devolva dignidade, sentimentos de pertença e consciência cívica a populações excluídas e marginalizadas, como é o caso das comunidades locais envolvidas neste projeto. Entendemos que o desenvolvimento do sentido de comunidade é, atualmente, um desafio crucial para a educação, porém, toma uma pertinência muito especial nos territórios habitados por seres humanos marginalizados, clandestinos, votados ao ostracismo, como é muitas vezes o caso dos imigrantes. Neste contexto, a problemática que aqui trazemos não se resume apenas a uma problemática científica, mas incorpora uma problemática social e política. A ação dos membros da comunidade científica que participam no projeto orientou-se no sentido de colocar a ciência ao serviço do desenvolvimento local e da construção da cidadania com populações excluídas politicamente, assumindo com elas um compromisso ético e político.

Curriculum Trivium et alphabétisation critique

O conceito e a prática do curriculum trivium (D’Ambrósio, 2009) e da alfabelização crítica (Freire, 1980) surgem, assim, como epistemologias da ação e categorias de análise na compreensão, recognição e fortalecimento nos processos de educação comunitária empreendidos. Para D’Ambrósio, o curriculum trivium organiza-se segundo três grande vertentes formativas:

    • Literacia, que pressupõe o uso de instrumentos comunicativos e se traduz na capacidade de processar criticamente informação escrita e falada, o que inclui leitura, escrita, cálculo, diálogo, ecálogo (conversação à distância), mass media, internet.
    • Materacia, que pressupõe o uso de instrumentos analíticos e se traduz na capacidade de interpretar e analisar criticamente sinais e códigos, de propor e utilizar modelos e simulações na vida quotidiana, de elaborar abstrações sobre representações do real.
  • Tecnoracia, que pressupõe o uso de instrumentos materiais e se traduz na capacidade de usar e combinar criticamente instrumentos, simples ou complexos, inclusive o próprio corpo, avaliando suas possibilidades e suas limitações e a sua adequação a necessidades e situações diversas.

 

Por se focar nos processos formativos e na transversalidade das capacidades que aqueles fomentam, o curriculum trivium implica participação e envolvimento, traduzidos em projetos, reflexões sobre a ação e o quotidiano dos participantes, tomadas de decisão e discussões críticas. Estes processos, focados na vertente formativa da educação, são complementados e articulados com a vertente informativa, mais orientada para a utilização de meios e instrumentos como livros, palestras, blogs, ou a simples audição e leitura que proporcionam o acesso aos meios de comunicação de massas, como a imprensa, a televisão ou a internet. A informação é fundamental para as tomadas de decisão na vida quotidiana e os educadores devem criar condições para a formação dos cidadãos a este nível, estimulando a crítica sobre o que se viu, se observou, se leu, se imaginou. Como afirma D’Ambrósio (2009), a materacia, na medida em que desenvolve a capacidade de interpretar e descodificar sinais e códigos, bem como elaborar abstrações sobre o real, é um instrumento fundamental para a tomada de decisões. O desenvolvimento deste currículo é ele próprio um exercício de transdisciplinaridade, dado que em cada atividade contempla o desenvolvimento de capacidades de literacia, de materacia e de tecnoracia, como exemplificaremos mais adiante. Assim, a sua prática e a sua compreensão devem ser perspetivadas numa visão complexa e sistémica da formação e do desenvolvimento humano (D’Ambrósio, 2011; Morin, 2002).

As propostas educativas de Ubiratan D’Ambrósio, consultor científico deste projeto, retomam a visão crítica de educação de Paulo Freire, na qual o conceito de conscientização é central. Este pedagogo foi também uma referência principal no projeto FU, uma fonte constante de orientação dos investigadores e educadores para o exercício de uma pedagogia da autonomia e da liberdade, voltada para a formação de sujeitos com consciência crítica e sentido de cidadania, que sejam elos transformadores coletivos para que estes conquistem visibilidade e reconhecimento cívico.

Entre a multiculturalidade e a transculturalidade – um conceito alargado de interculturalidade

Em Ensaio (1940), Fernando Ortiz apresenta-nos o termo – transculturalismo – definido como “ver a si no outro”, apesar de muitas vezes ser também entendido como algo que se estende através de todas as culturas ou ainda trabalhado como sendo a reinvenção de uma nova cultura comum (Mesquita, 2014). Esta é também a perspetiva de D’Ambrósio quando, ao falar de transdisciplinaridade nos diz que esta

“reside numa postura de reconhecimento que não há espaço e tempo culturais privilegiados que permitam julgar e hierarquizar, como mais correto ou mais certo ou mais verdadeiro (…). A transdisciplinaridade é, na sua essência, transcultural.” (D’Ambrosio, 2011, p.11).

Esta transculturalidade é, ao mesmo tempo, a assunção do que já somos – unos na nossa humanidade comum – mas também a projeção de uma utopia do todo – um processo de devir. Para isso ser possível é preciso entender que há uma interconexão interna e invisível e que esta pode ser densificada numa rede de interdependências múltiplas. Mas, se somos unos e podemos ainda ser mais, também somos diversos, múltiplos. Por isso, “o conceito de multiculturalidade leva-nos a aceitar a diferença, a fronteira, a exterioridade da cultura do Outro” (Caetano, no prelo).

O conceito de interculturalidade propõe-nos a ponte, a travessia e o encontro. Em simultâneo reconhece o múltiplo, facilita o encontro que o vai transformar e radica na unidade que torna possível tudo o mais. Assim,

“entende-se a interculturalidade como um processo de transformação social que abrange processos transculturais, onde a dimensão cultural se dilui no todo comum, e processos multiculturais onde ela se evidencia, sem que em nenhum caso se anule” (Vassalo & Caetano, no prelo).

Concordamos com Abdallah-Preteceille (2005) quando, ao defender uma epistemologia do intercultural, sublinha que “l’interculturel implique une recherche du noyau de sense” e, por isso, não se trata simplesmente de um método (de pesquisa ou de ação), mas também de uma “ontologia” que, como diz a autora, “se construit au fur et à la mesure de l’observation et de l’élucidation du rapport à autrui” (p. 55/56).

Le projet Frontières Urbaines[2]

Le projet FU prend forme dans l’interrelation entre la communauté académique et scientifique et deux communautés locales, se trouvant dans un même territoire – le bourg de pêcheurs de Costa de Caparica, situé près de Lisbonne. Les deux communautés choisies comme champ d’intervention sont des communautés avec lesquelles certains des participants de la communauté académique avaient déjà travaillé auparavant, dans le cadre d’un autre projet d’éducation communautaire. Une communauté de pêcheurs, dont l’histoire remonte au début du XXe siècle, et où plusieurs flux migratoires, de deux régions du pays, convergent. Une autre communauté d’un quartier illégal, communauté Quartier (tradution de Bairro) regroupant en grande majorité des groupes d’immigrés en provenance des pays africains qui ont été anciennes colonies portugaises (principalement capverdiens), des tsiganes et des migrants d’autres régions du Portugal.

Ce projet vise à l’autonomisation des individus et des communautés, par le biais de la promotion de pratiques éducatives, sociales et culturelles qui favorisent l’organisation, l’interaction et l’intégration dans des communautés plus élargies.

A equipa de investigadores e de consultores do projeto é constituída por investigadores de variadas áreas científicas, desde a Antropologia, a Física, a Arquitetura, a Educação, as Artes Plásticas, a História, a Biologia, constituindo-se como uma equipa multidisciplinar, ancorada numa perspetiva de abordagem ao conhecimento complexa, sistémica e transdisciplinar .

La méthodologie de recherche

Le projet FU s’encadre, du point de vue méthodologique, dans la perspective de l’ethnographie critique (Thomas, 1993).

L’ethnographie critique utilise les procédures et les techniques de l’ethnographie classique visant, toutefois, d’impliquer les membres des communautés dans les processus de changement intentionnel, pour lesquelles participe l’ethnographie, en fournissant des informations et un point de vue critique sur leurs vies.

Le travail de recherche que traitons ici fait partie de ce projet qui est plus vaste. As análises e interpretações, apoiam-se nas múltiplas notas de campo, fotografias, videogravações e também em entrevistas de focus group realizadas com cinco mulheres participantes na escola de alfabetização crítica da comunidade Bairro.

Alfabetização Crítica e Curriculum Trivium no FU – um caminho de transdisciplinariedade

Estas afirmações, contidas no Relatório Final do Projeto FU (Mesquita, 2014, p. 50), espelham bem a filosofia orientadora e a práxis que foram assumidas:

“Procurou-se, permanentemente, que a busca teórica fosse desenvolvida num processo dialógico crítico com os membros das comunidades, com o intuito de fortalecer o que Ubiratan D’Ambrosio (2002) chama de triângulo da vida. Este assenta numa ética de diversidade que se pauta em: “1) Respeito pelo outro, com todas as suas diferenças; 2) Solidariedade com o outro na satisfação das necessidades de sobrevivência e transcendência; e 3) Cooperação com o outro na preservação do patrimônio natural e cultural comum”. Segundo D’Ambrosio, esta ética conduz à Paz.”

Este processo de encontro e diálogo foi concretizado através das três dimensões do projeto, que surgiram face aos interesses, necessidades e desejos das duas comunidades locais: a alfabetização crítica, as histórias de vida e a cartografia múltipla, além de uma outra dimensão transversal – a mediação comunitária (Freire & Caetano, no prelo). Aqui iremos deter-nos fundamentalmente na primeira destas dimensões, a da alfabetização crítica. Contudo, dada a perspetiva, complexa e sistémica, em que o projeto assenta, as outras dimensões surgem naturalmente ligadas.

Ao longo dos dois anos de duração do projeto FU, realizaram-se múltiplas atividades com os membros das três comunidades, quer nos territórios onde as comunidades locais estão implantadas, quer noutros espaços geográficos e culturais, como sejam universidades, museus, associações, casas de cultura, ou autarquias.

A alfabetização visou responder especialmente ao desejo de habitantes de uma das comunidades locais (a comunidade que designamos de Bairro), de desenvolverem a literacia em sentido clássico, ou seja, a aprendizagem da leitura e da escrita. Constituiu-se, assim, um grupo de dez mulheres com idades diversas (entre os trinta e poucos anos e os oitenta). Todas eram de nacionalidade cabo-verdiana e faziam parte da comunidade Bairro. O espaço físico da escola era um pequeno telheiro da habitação de um morador. O grupo nem sempre foi o mesmo, embora seis dos seus membros o tenham constituído na maior parte do tempo de duração da escola (cerca de ano e meio), em encontros pedagógicos bissemanais de cerca de hora e meia. O trabalho das educadoras (membros da comunidade académica e da comunidade local) num primeiro momento focou-se no desenvolvimento da literacia em sentido clássico, seguindo com adaptações o método de alfabetização de Paulo Freire (1980). Pretendeu-se criar condições de iniciação à escrita e à leitura (para a maior parte das mulheres participantes) e de desenvolvimento de competências de leitura e escrita para uma delas (para mais detalhe ver Caetano & Freire, 2014). Contudo, existiu sempre uma preocupação de promoção da literacia no sentido amplo que D’Ambrósio e Paulo Freire lhe atribuem. A escola foi espaço de encontro e de aprendizagem propiciador de uma literacia crítica que se estende a outras áreas, nomeadamente à da participação cidadã. Foi neste sentido que, por exemplo, se integrou na escola a análise das situações de violência sobre os moradores do Bairro, muitas vezes gratuita, por parte das forças policiais locais, com a participação de um membro dessas forças policiais nas sessões de alfabetização. Nestes encontros, de um modo particular as moradoras mais idosas, que faziam parte do grupo, assumiram um forte protagonismo e demonstraram uma capacidade de diálogo, que gerou entendimentos mútuos e mudanças relevantes nesta dimensão da vida do Bairro. Estes processos revelaram-se também muito significativos quer para o empoderamento pessoal dos participantes diretos, quer para dar visibilidade e reconhecimento ao coletivo. Como Ubiratan D’Ambrosio várias vezes sublinhou em encontros de reflexão sobre o projeto, “o ponto de partida de uma educação comunitária deve ser uma reflexão sobre a violência”.

Este é um mero exemplo, de entre muitos outros acontecimentos similares nos quais podemos rever a prática de uma pedagogia baseada na conscientização e promotora de literacia crítica. Contudo, o trabalho educativo na escola de alfabetização não se esgota na vertente literacia. Poderemos facilmente encontrar nele a vertente tecnocracia, quando, por exemplo, pensamos no trabalho pedagógico desenvolvido no sentido do treino da motricidade fina, com vista à criação de condições de coordenação motora para a prática da escrita, ou o exemplo do trabalho do artista-pintor João Moreira, integrado no FU, com as crianças e com os adultos do Bairro, que com ele produziram uma grande diversidade de trabalhos artísticos.

O projeto FU ajudou a impulsionar a criação de um grupo de batuko[3], dando corpo a um desejo dos moradores previamente existente. Trata-se de uma prática cultural ancestral em Cabo Verde, muito associada aos ambientes festivos e à alegria, em que as mulheres cantando e dançado se reforçam mutuamente nessa comunhão de alegria. A maior parte das mulheres que iniciaram e integraram o grupo, faziam parte da escola e aí se desenvolveu um trabalho de escrita das letras das canções cantadas nas sessões de batuko.

A escola não se restringiu ao trabalho com estas mulheres do núcleo de alfabetização. Ela constituiu o centro do qual irradiaram muitas outras ações, que se expandiram, não somente à comunidade Bairro, como à comunidade piscatória. Ainda na comunidade Bairro, a escola de alfabetização crítica foi a catalisadora de movimentos políticos que deram origem, quer à organização de uma comissão de moradores, quer à reivindicação junto da autarquia local da construção de uma cozinha comunitária, quer ainda à organização de um movimento cívico de reposição dos direitos de comercialização num mercado ambulante, por parte da comunidade cigana, direitos esses que lhe haviam sido confiscado anteriormente. Todos estes movimentos exigiram não só pesquisa e recolha de informação, discussões orientadas para a análise crítica dos problemas e das soluções e a escrita final coletiva de cartas para organismos oficiais. Nestes processos de alfabetização crítica se articulam elementos de desenvolvimento da literacia, da materacia e da tecnocracia.

Também a dimensão do projeto que designámos por cartografia múltipla foi incluída nos processos de alfabetização. A cartografia múltipla correspondeu ao desejo e necessidade dos membros da comunidade Bairro de fazer um levantamento e mapeamento exaustivo das habitações e moradores no Bairro e também dalguns aspetos da pesca, por solicitação da comunidade piscatória. Alguns dos membros da escola de alfabetização participaram no processo no Bairro e a investigadora responsável por esta parte do projeto orientou sessões de formação com vista ao desenvolvimento de capacidades de leitura de mapas e orientação. Também outros investigadores fizeram, com pescadores da outra comunidade uma pesquisa e mapeamento dos pontos de referência estáticos da pesca e a análise dos mesmos, face ao GPS, e procederam à escrita coletiva de uma carta aos responsáveis pela pesca (com cópia para a polícia marítima). Trata-se de atividades nas quais igualmente se combina o desenvolvimento da materacia, com o da tecnocracia e da literacia.

São alguns exemplos, retirados de uma vasta panóplia de ações promotoras do desenvolvimento dos participantes neste projeto, que ilustram não só a transversalidade das vertentes do curriculum trivium, como a transdisciplinaridade e transculturalidade na abordagem educativa do mesmo. Nestes processos, havendo educadoras “residentes” (duas educadoras investigadoras, uma das quais a coordenadora do projeto), todos eram chamados a ser educadores, desde a investigadora antropóloga, à bióloga, ao arquiteto, aos membros das comunidades locais. A Lizzi, jovem cabo-verdiana, com uma escolaridade de 12 anos, era educadora e mediadora linguística e participava sistematicamente nas sessões de alfabetização. Mas também eram educadores, o Sr. Lídio, pescador português, experiente nas artes de pesca e conhecedor da cultura local, a D. Vitória, senhora idosa cabo-verdiana, com muita sabedoria, feita de uma longa experiência de vida resiliente, e com um enorme conhecimento sobre agricultura.

Construiu-se assim um clima humano de reciprocidade e reconhecimento mútuo, que foi o esteio para a criação de uma outra escola, a Escola do Bairro, que ampliou as participações e as áreas de educação da anterior.

A multi-inter-trans culturalidade no FU

 

No projeto FU, e mais especificamente na comunidade Bairro, desenvolveu-se um processo de interculturalidade, no qual se reconhecem, simultaneamente, dinâmicas dialógicas de cruzamento de culturas que fortalecem a identidade de cada cultura e que permitem o conhecimento, reconhecimento e valorização das culturas de cada comunidade e subcomunidade, junto de outras. Esta vertente multicultural é uma dimensão fundamental de empoderamento junto de populações fragilizadas, nomeadamente pela deslocação do país de origem e pelas condições sociais e económicas em que vivem. Entre os processos de aprofundamento de cada cultura destacamos a organização de iniciativas culturais próprias, dando expressão e impulsionando movimentos internos e desejos que já existiam espontaneamente mas que ainda não tinham tido um espaço mais estruturado para se exprimir, como foi o caso da formação do grupo de batuko “Nôs terra”, a inventariação de casas e seus moradores e que constituiu um processo de recenseamento a partir do qual foi possível organizar a eleição de uma comissão de moradores. Também a formação de uma associação de pescadores, apoiada pelo projecto, desta feita na comunidade piscatória, constituiu uma forma de fortalecimento interno e de organização social. A organização de um projecto de educação não formal, como um curso de kriolu, constituiu uma outra forma de promover a cultura cabo-verdiana junto de outros, ao mesmo tempo que favoreceu a comunicação e que pode ser entendida como um passo de aprofundamento da interculturalidade.

Mas, uma visão de interculturalidade na educação comunitária levou-nos a ir mais longe neste processo de interacção, promovendo uma verdadeira transformação cultural, pelo encontro e diálogo. Para além do reconhecimento, pretende-se alertar para problemas das comunidades, ampliar a participação das comunidades em diversos fóruns e favorecer a aprendizagem de todos, com todos. Na área da comunicação e divulgação da cultura e da realidade social das comunidades, destacam-se iniciativas intracomunitárias e a apresentação de cada comunidade junto de outras, em iniciativas públicas mais abrangentes, como fóruns científicos, encontros entre comunidades, tertúlias de poesia, na bienal de arquitectura, na inauguração de uma exposição de pintura. Também a participação local, no diálogo com instâncias de poder autárquico e a colaboração entre diversos parceiros para resolução de problemas constituem formas de interculturalidade que o projecto favoreceu. Destaque, ainda, para a escola voluntária, em que participantes de diferentes comunidades aprendem uns com os outros.

Assim se vai construindo, de forma recursiva, uma comunidade mais ampla, mais entretecida, mais interdependente. Esta é uma meta transcultural, que é a assunção da humanidade comum, pela qual se almeja e se vai lentamente percorrendo o caminho de romper as fronteiras que separam e fragmentam. Trata-se de uma utopia, ao mesmo tempo que já é uma realidade – o sermos parte da mesma humanidade. Uma humanidade que se realiza na diversidade. Uma humanidade que se transforma pela autoreflexão e autocrítica, por processos dialógicos e pela discussão e compreensão das relações de poder em termos de linguagem e história. Uma humanidade que se desenvolve pela conscientização da distorção da própria realidade social e pelo papel que cada um pode ter no rompimento dos condicionamentos sociais, das ilusões e dos mitos que nos impregnam e nos prendem. Uma conscientização, por parte das comunidades, acerca de como elas próprias criam seus significados, que poderá ser favorecedora de uma transformação onde a coesão social, o comunitarismo, a organização podem sair reforçadas.

Considerações finais

A educação, perspetivada a partir das conceções e das práticas da pedagogia crítica e do curriculum trivium, é uma dimensão nuclear no projeto FU. Esta abordagem à praxis educacional concorre para o reforço de uma visão transdisciplinar, sobre os processos educativos e os movimentos sociais e culturais que lhe estão associados. A experiência vivida como educadoras e como investigadoras neste projeto, leva-nos a sustentar que a aplicação do curriculum trivium na prática educativa e na sua análise à luz das categorias que incorpora poderão ser vistos como um exercício da própria transdisciplinaridade. Assim como, a prática da pedagogia crítica constitui um exercício de inter-transculturalidade.

Muito se fez, mas muito há ainda por fazer, para aprofundar os processos culturais e interculturais desenvolvidos. O caráter ainda esporádico de manifestações culturais, como é o caso das apresentações do grupo de batuko, a necessidade de melhorar a organização e comunicação dentro da comissão de moradores, o interesse de desenvolver a relação entre as duas comunidades: piscatória e Bairro, a promoção de uma organização mais coesa da comunidade piscatória são alguns dos eixos a considerar no futuro e que nos levam a estender este projeto no tempo. Por outro lado, o que se alcançou em conjunto é estímulo para nós e outros parceiros alargarem este projeto a outros contextos, envolvendo comunidades em vários países da Europa, baseando-nos no curriculum trivium e numa perspetiva alargada de multi-inter-transculturalidade. Trata-se de “uma visão complexa na qual o inter é um prefixo que precisa ser entendido num sentido amplo que englobe o trans (cultural), mas que se sustente no co(cultural). Pois, se todos prefiguram a existência do Um e do Outro diferente, não se pretende nem uma fusão que anule as diferenças, nem uma interação que as mantenha à distância, mas uma construção colaborativa que aproxima e leva a uma relação autêntica, feita de interdependências” (Caetano et al., não publicado).

Références bibliographiques

Abdallah-Pretceille, M. (2005). L’éducation interculturelle. Paris : PUF.

Caetano, A. P. & Freire, I. (2014). Identités et pratiques culturelles dans un projet d’éducation communautaire. In Louis Basco (dir.), Construire son identité culturelle (181-202). Paris : L’Harmattan.

Caetano, A. P. Trans-inter-multi culturalidade – a poesia como lugar de mediação. (não publicado).

Caetano, A.P.; Freire, I.; Machado, E.; Bicho, L. & Vassalo, S. A voz dos alunos na educação intercultural (não publicado).

D’Ambrosio, U. (2011). Transdisciplinaridade como uma resposta à sustentabilidade. Terceiro Incluído, 1 (1), p.1–13.

D’Ambrosio. (2009). Transdisciplinaridade. São Paulo: Ed. Palas Athena.

D’Ambrosio, U. (1999), Educação para uma Sociedade em Transição, Editora Papirus, São Paulo / Brasil.

Freire, P., (1980). Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,10ª Edição.

Freire, I. & Caetano, A. P. (no prelo). Mediación en el contexto comunitario. Etnografía crítica de un caso. Revista La Trama, Revista interdisciplinaria de mediación y resolución de conflictos.

Mesquita, M. (2014). Fronteiras Urbanas. A dinâmica dos encontros culturais na educação comunitária. Relatório de Progresso 2012-2013. Lisboa: Instituto de Educaçao/FCT.

Morin, E. (2002). Pour une politique de civilization, Arléa Poche, nombre 76, Paris: Éditions Arléa.

Thomas, J. (1993). Doing Critical Ethnography. California: Sage Pub. Co..

Vassalo, S. & Caetano, A.P (no prelo). O papel do diretor de turma na gestão curricular de experiências de educação intercultural na turma do 6ºB. Atas do XXI Colóquio da AFIRSE. Educação, economia e território. Lisboa: AFIRSE.

 

 

 

 

[1]Projet « Frontières Urbaines (Fronteiras Urbanas) : la dynamique des rencontres culturelles dans l’éducation de la communauté », financé par la Fondation pour la Science et la Technologie [référence PTDC/CPE-CED/119695/2010], dont la responsable est Mônica Mesquita, chercheuse en collaboration à l’Institut d’éducation, Université de Lisbonne.

[2] Este texto de apresentação do projeto é bastante próximo de outro sobre o mesmo projeto, já publicado, de autoria duas das presentes autoras (Caetano & Freire, 2014).

[3] Batuko, genre musical originaire de l’île de Santiago, Cap-Vert, dont les éléments sont : le rythme, le chant et la danse. Un groupe de femmes sont assises en cercle. Chaque femme joue un instrument de percussion artisanal, en chantant tous des chansons sur des thèmes quotidiens, sous la direction de la batucadera, la leader du groupe, tandis que d’autres dansent.

 

presentation_ColloqueInternational

 

A etnomatemática e a economia local: o conhecimento trivium dos pescadores da Costa da Caparica na Arte Xávega.

Autor: Nuno Vieira

 

Resumo

D’Ambrósio entende literacia como a capacidade de ler códigos e símbolos: a materacia, os processos mentais que decorrem desta aquisição de informação e, por fim, a tecnoracia, os instrumentos processuais que advêm dos anteriores. Partindo destas definições consideramos o conhecimento trivium como a aquisição e desenvolvimento destas competências, num determinado contexto, como será o caso de uma atividade profissional. A escola ensina a matemática ocidental, não privilegiando os saberes matemáticos das populações que servem, tornando o ensino desta disciplina hermético e estéril, na perspetiva dos alunos provenientes de determinados grupos sociais.

Nas artes da pesca, os processos de literacia estão associados à leitura de fenómenos naturais, como condições meteorológicas, do mar ou comportamentos animais, para a partir daqui tomar as decisões relativas à pesca, como momentos e locais para efetuar o lance.

As artes de pesca tradicionais têm contado com o conhecimento trivium dos pescadores para se manterem economicamente viáveis, particularmente numa localidade onde concorrem com o turismo pelo mesmo espaço de praia.

 

Palavras Chave: etnomatemática; literacia; materacia; tecnoracia; arte xávega

 

 

 

Revista Internacional de Educación para la Justicia Social

 

Ethnomathematics and Local Economy: Costa da Caparica fisherman’s trivium knowledge at the Xávega‏ art.

 

Nuno Vieira

 

 

Abstract

D’ Ambrosio understands literacy as the skill to read codes and symbols; matheracy, as the mental processes that arise from that acquisition of information and , finally, the technoracy, as the procedural instruments that come from literacy and matheracy. Based on these definitions we understand trivium knowledge as the acquisition and development of these skills in a given context, as it is the case of a professional occupation. School teaches Western mathematic , not focusing teaching processes on the mathematical knowledge of the populations they serve, making the teaching of this subject airtight and sterile on the perspective of students from certain social groups .

For fishermen, the processes of literacy are associated with the reading of natural phenomena, such as weather, sea conditions, or animal behaviour, and make their decisions related to fishing activities, like timing and places to go fish.

The arts of traditional fishing activity have depended on the trivium knowledge of fishermen to remain economically viable, particularly in a location where this activity competes with tourism for the beach space.

 

Keywords : ethnomathematics ; literacy; mathemacy ; technoracy ; Xávega art

 

 

 

Introdução

Como a investigação em etnomatemática tem demostrado, o pensamento matemática tem sido um elemento basilar na evolução das civilizações, tanto na produção de conhecimento como na evolução e otimização da atividade humana, embora estejamos a falar de uma matemática frequentemente sem expressões numéricas ou algoritmos. Facto é que matemática está subjacente à atividade humana e aos processos de produção, sejam eles artesanais ou industriais, pelo que o domínio destes conhecimentos constitui-se uma forma de poder. Estando o pensamento matemático presente em todas as culturas desde os tempos mais remotos e particularmente em ofícios de cariz manual, estará presente nas atividades de pesca tradicionais. Os pescadores, para construírem os seus barcos e as suas redes, sempre aplicaram conceitos matemáticos, que foram assimilando, aperfeiçoando e procurando perpetuar, passando-os aos descendentes da sua arte.

Os processos de transmissão de conhecimento entre gerações, numa cultura, são variados e anteriores à própria escrita, e entre os mais frequentes está a memória oral, o ritual das gerações mais novas ouvirem histórias contadas pelos mais velhos e os jogos (Vieira, 2013). No presente, a hegemonia da escola na transmissão de conhecimentos resulta, em grande parte, do domínio da memória escrita sobre a oral, que área da matemática terá contribuído para uma valorização da matemática escrita sobre os pensamentos matemáticos sem tradução escrita . Referimo-nos às técnicas de observação e reflexão, para entender, conhecer, explicar, inferir, respondendo à pulsão de sobrevivência e transcendência. Mas, os conceitos e os processos matemáticos sem tradução escrita encontram na escola um espaço reduzido, quando não são mesmo ignorados.

A investigação em etnomatemática, por outro lado, tem mostrado que a transmissão de conhecimentos matemáticos, dentro de grupos culturais, sociais ou familiares, ocorre independentemente do seu estádio de desenvolvimento ou nível de complexidade. Os processos de industrialização do séc. XIX levaram a que se estabelecesse uma relação entre o nível de conhecimentos matemáticos (a otimização, a dedução, a inferência), úteis em qualquer atividade produtiva, e o domínio da língua materna do trabalhador com a sua capacidade produtiva, pelo que os sistemas de ensino passaram a incorporar sempre estas duas vertentes no seu currículo.

Se é comummente aceite que após a revolução industrial o nível de desenvolvimento de uma sociedade decorre, em grande parte, do seu conhecimento científico e tecnológico, no qual a Matemática desempenha um papel central, então entende-se com alguma naturalidade que esta ocupe um lugar de destaque nas instituições escolares, e esteja presente na generalidade dos curricula, ocupando cargas horárias significativas. Facto acentuado pela convicção de que o desempenho da população nestas áreas, medido por testes internacionais padronizados, se relaciona com os índices de desenvolvimento de uma nação. Assim, a avaliação das políticas educativas, e do próprio sistema de ensino, está fortemente condicionada pela evolução dos resultados obtidos pelos alunos, em sucessivos testes. Mas, um pouco ao arrepio deste discurso, assente numa argumentação defensora das virtualidades da matemática e das ciências para o desenvolvimento de capacidades individuais como a otimização, o raciocínio ou a inferência, Kilpatrick (1999, p. 12) enfatiza que a Psicologia demonstra não haver uma relação estreita entre a inteligência, o desenvolvimento do raciocínio, e a aprendizagem da matemática. Estas capacidades são desenvolvidas, também, no desempenho de determinadas atividades profissionais que obrigam a raciocino, a inferências, à análise de dados e a dedução. Nomeadamente, os processos artesanais associados às artes de pesca são construções sociais, com fortes componentes matemáticas, que, uma vez adquiridas, facilitam a comunicação entre quem ensina e quem aprende ou entre quem comanda e quem executa. Assim, contribuirão para encarar-se de forma unívoca a resolução dos problemas, seguindo uma determinada ideologia: “ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica” (Freire, 1997, p. 122) mas, as ideologias estão normalmente ao serviço de interesses particulares, apresentadas como interesses universais (Bourdieu, 2001, p. 10). Como as relações de comunicação são inseparáveis das relações de poder, dependendo estas últimas da forma e do conteúdo do poder material ou simbólico acumulado pelos agentes ou pelas instituições envolvidas, os pescadores proprietários de barcos são portadores de um grande poder simbólico. “São enquanto instrumentos estruturados e estruturantes da comunicação e do conhecimento que os «sistemas simbólicos» [destaque do autor] cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica)” (Bourdieu, 2001, p. 11). Existe violência simbólica quando o mestre que ensina, ou o que que faz, não é entendido pelos que aprendem ou executam, e, analogamente quando o que o aprendente ou o executante diz ou faz não é entendido pelo mestre. Quando o mestre fala com o aprendente, e explicita um raciocínio, fá-lo com recurso a símbolos conceitos e definições que exigem o seu conhecimento prévio. Como particularmente os conhecimentos matemáticos estão, por norma, encadeados, se um aprendente ou executante deixa de acompanhar o ritmo imposto tem dificuldade em recuperar. E se o atraso for muito significativo torna-se praticamente irreversível, pelo que este acabará por não apreender as especificidades e condicionantes do ofício, não executando convenientemente as tarefas atribuídas com evidentes consequências.

 

O programa etnomatemática

As escolas têm características e modos de operar próprios, já que estão inseridas em realidades socioeconómicas e culturais diferentes, com populações escolares distintas. No entanto, na sua organização está presente um conjunto significativo de características comuns, resultado da história dos sistemas educativos. A denominada “gramática da escola” (Barroso, 1999, 2003; Formosinho & Machado, 2008; Gimeno Sacristán, 2008; Tyack & Cuban, 1995) tem inscrita a forma como se “divide o espaço e o tempo, se classifica os alunos em níveis e são dispostos por sala de aula, como se divide o conhecimento em áreas e como se atribuem classificações e prémios em resultado das evidências de aprendizagem” (Tyack & Cuban, 1995, p. 85). Trata-se da “pedagogia coletiva” (Barroso, 1999, p. 131), que tem na sua génese a uniformização de toda a estrutura educacional, a mesma que leva a que independentemente da localização da escola, das suas particularidades e especificidades, bem como dos interesses demonstrados pelos alunos, o professor tenda a ensinar o mesmo a todos, como se de um só se tratasse, nos mesmos períodos de tempo. É um princípio que por mais que se negue e renegue, continua na base da organização escolar e é evidente na distribuição dos alunos por turma que obedece à homogeneidade possível, quer em termos etários, quer do nível de conhecimentos, e, em certa medida, das condições socioeconómicas dos alunos. Este modelo de escola organizada em classes, que mantem uma demarcação entre o mestre que ensina e os aprendizes que ouvem sem questionarem a sua autoridade, embora tenha sido atacado desde a origem por alguns pedagogos, manteve a sua eficácia até ao momento em que a escola se abriu para todos. A massificação da escola, a inclusão escolar de todas as diferenças e peculiaridades, veio dificultar o processo de homogeneização das classes/turmas. A “escola real” (Tyack & Cuban, 1995), a escola que os alunos frequentam com os mesmos princípios de funcionamento que a que os seus pais e avós já frequentaram, e que estes têm como referência, com saberes categorizados em unidades curriculares, com um determinado número de tempos letivos por disciplina rigidamente regulados por um horário, que cadencia o ritmo das atividades desempenhadas, sem aparente articulação entre os saberes abordados em cada uma das unidades.

O calendário escolar divide o percurso dos alunos em segmentos de vária ordem: o período letivo, delimitado por interrupções letivas de verão, de Natal e de Páscoa; o ano letivo, marcado pelas férias de verão; e os quatro ciclos de ensino, primeiro, segundo, terceiro e ensino secundário. Para cada um destes segmentos é estabelecido término marcado por um momento de avaliação e, nalguns casos, uma prova de exame nacional. Estes momentos de avaliação “têm a tríplice função de indicar se o indivíduo atingiu o nível estatutário, de garantir que a sua aprendizagem está em conformidade com a dos outros, e diferenciar as capacidades de cada indivíduo” (Foucault, 1977, p. 143), estando previstos «castigos» para os casos em que os resultados se afastam dos definidos como «mínimos». Esta organização dos sistemas de ensino encontra, para Foucault, espelho na organização dos quartéis, também assentes nesta lógica de séries. Aqui não para atingir um grau académico mas igualmente para progredir numa estrutura hierarquizada, a militar. Salientamos que o termo progressão é utilizado em ambas as organizações para denominar a passagem de uma série para a seguinte. Foucault salienta que ainda se podem “estabelecer séries de séries” (1977, p.143), definidoras do tempo de permanência em cada um, o que também define uma posição estatutária. Mais concretamente no ensino da matemática, não apenas estão estabelecidas as séries (períodos e anos letivos), as séries de séries (os ciclos de ensino), a avaliação no termo de cada série, com ou sem exame nacional, os castigos quando não são cumpridos objetivos mínimos, como também está enraizado um princípio de precedência, que tende a considerar que se um aluno não tem sucesso numa determinada série, dificilmente terá sucesso nas que se sucedem, ficando vulnerável à aplicação de «castigos». Neste mesmo sentido encontramos o «preconceito» de que apenas as mentes inteligentes, as de nível intelectual superior, estão aptas a seguir optar por um percurso escolar em áreas do conhecimento com uma forte componente em matemática. Os próprios professores da disciplina alimentam e acentuam a ideia de que a matemática é “misteriosa e difícil” (Kilpatrick, 1999, p. 16).

Mas, o professor de Matemática é antes de mais um educador, que, enquanto ensina, promove valores e transmite aos alunos uma visão do mundo. Assim, fará sentido “falarmos de uma «matemática dominante», que é um instrumento desenvolvido nos países centrais e muitas vezes utilizado como instrumento de dominação. Essa matemática e os que a dominam se apresentam com postura de superioridade, com o poder de deslocar e mesmo eliminar a «matemática do dia-a-dia»” (D’Ambrosio, 2013, p. 49). É de salientar que a matemática vai para além das especificidades das disciplinas escolares, organizadas em «séries», e independentemente da duração que as definem. Pode estar, também, associada à busca da justiça social, segurança e tranquilidade, podendo quem ensina matemática subordinar a sua ação a “uma ética maior ancorada em três vertentes: 1 – respeito pelo outro com as suas diferenças; 2 – solidariedade com o outro, reconhecendo sua essencialidade; 3 – cooperação com o outro, reconhecendo que sozinhos não podemos lidar com situações e problemas globais” (D’Ambrosio, 2013, p. 45). Efetivamente, os conhecimentos matemáticos de grupos sociais ou culturais, como os pescadores, não são entendidos pelos que têm nas instituições de ensino uma conceção de “escola real” (Tyack & Cuban, 1995), logo não a valorizando, nem, tão pouco, lhe conferindo importância ou utilidade. Contrariamente à matemática ensinada nas escolas de matriz ocidental, os conhecimentos matemáticos de grupos sociais, como os pescadores dedicados às artes de pesca tradicionais, são de assaz importância para o desenvolvimento de um programa etnomatemática, conforme proposto por D’Ambrosio. Este é “um programa de pesquisa que teve sua origem na busca de entender o fazer e o saber matemático de culturas não originados das europeias e de classes populares, muitas marginalizadas, numa mesma sociedade, onde classes diferentes se encontram e há uma dinâmica de encontro de saberes e fazeres dessas classes. Faz parte desse programa de pesquisa entender o intercultural a dinâmica da evolução de fazeres e saberes que se encontram, mas somos igualmente levados a questionar o intra-cultural, numa mesma sociedade” (D’Ambrosio, 2013, p. 46).

Não podemos deixar de salientar que o termo etnomatemática, neste contexto, se distingue dos estudos em etnomatemática que se visam identificar elementos matemáticos em manifestações culturais, artesanais e tradicionais, próprias de um povo ou de uma cultura, usando como instrumento de análise a matemática ocidental. O programa etnomatemática assenta nas categorias identitárias de cada cultura ou grupo cultural, no que lhe é próprio e característico, podendo mesmo definirem-se características que lhes são únicas, mesmo associadas às mais elementares necessidades de subsistência, em harmonia com o local geográfico, físico e humano, onde se inserem e onde vivem. Esta necessidade de “sobrevivência e transcendência leva o ser humano a desenvolver modos, maneiras, estilos de explicar, de entender e aprender, e de lidar com a realidade percetível” (D’Ambrosio, 2013, p. 47).

Ainda na perspetiva de D’Ambrosio, a matemática deverá ser o “modo de pensar mais universal” (2007, p. 25) de que o homem dispõe[1]: sendo o pensamento matemático o motor da ciência e da tecnologia deverá sê-lo também, da educação para a paz, e um caminho para a resolução de problemas, nomeadamente os que decorrem dos desequilíbrios sociais e das perturbações nos ecossistemas, fortemente marcados pelas taxas de consumo dos recursos materiais e energéticos. Assim, o estudo e a compreensão dos factos históricos da matemática devem nela estar presentes de uma forma sustentada: uma disciplina é a sua epistemologia. “É importante conhecer a evolução da etnomatemática como resposta ao curso perigoso da humanidade em direção à destruição da dignidade individual, das relações sociais tensas e violentas, das relações com o ambiente inviáveis e o aumento dos confrontos armados” (D’Ambrósio & Rosa, 2008, p. 99). O reconhecimento da validade dos modos como o outro conta, mede, calcula, infere, localiza, representa, joga é um caminho sustentável para a equidade e para tolerância entre os povos.

O Programa Etnomatemática resulta de uma visão transdisciplinar e transcultural do conhecimento. Todos os povos, pensados como a mesma espécie humana, e todas as culturas, pensadas como integrando uma civilização planetária, exigem um novo pensar e um novo relacionamento de saberes e de fazeres que muitas vezes se manifestam diferentemente. (…) as novas relações internacionais e a intenção de recuperar a dignidade cultural de todos os povos, manifesta na Declaração Dos Direitos Humanos, exige o diálogo intercultural e interdisciplinar. Esse é o primeiro passo para o pensamento transcultural e o conhecimento transdisciplinar. A transculturalidade e a transdisciplinaridade possibilitam a sobrevivência, com dignidade, da espécie humana. Isso é anti-positivista. O Programa Etnomatemática é representativo desse novo pensar. (D’Ambrosio in Vieira, 2008, p. 168).

 

D’Ambrosio chama, ainda, a atenção para algo que todos sabemos: o facto da sobrevivência da humanidade estar dependente da sua relação com a natureza, relação essa regulada por princípios culturais e ecológicos que não raras vezes, ao longo da história contribuíram “para o conflito que se desenvolve, para o confronto, a violência e a subjugação do outro e da natureza” (D’Ambrósio & Rosa, 2008, p. 101). A demanda contra o conflito e a violência pode ser bem‑sucedida se existir partilha na distribuição do conhecimento e dos recursos que a natureza oferece. É este o caminho apresentado por D’Ambrosio, para “nos conduzir a uma civilização planetária, com paz e dignidade para toda a humanidade” (D’Ambrósio & Rosa, 2008, p. 109). E nele a educação matemática surge como um meio de comunicação e uma ferramenta úteis e eficazes para a distribuição e gestão dos recursos. O que justifica o papel central das ideias matemáticas em todas as civilizações é o facto de ela fornecer os instrumentos intelectuais para lidar com situações novas e definir estratégias de ação (D’Ambrosio, 2013, p.49), e, efetivamente, os pescadores de Arte Xávega da Costa da Caparica evidenciam ideias matemáticas construídas e passadas de geração em geração.

O processo educativo tem também a seu cargo a tarefa de articular o velho com o novo, harmonizando o passado e o futuro. Não se deve descurar a tradição e os valores estabelecidos no passado, que nos caracterizam e nos conferem a identidade, mesmo tendo em mente a preparação para o futuro, estimulando a criatividade e a inovação. Assim, a educação matemática é, também, uma questão política. A sociedade tem avançado no sentido da valorização dos números, seja na forma de estatísticas, que ao serem conhecidas condicionam a opinião pública e a individual, seja na economia de mercado, sustentada na matemática, seja na quantificação de tudo, onde se tenta traduzir tudo em valores numéricos, com o intuito de seriar e estabelecer rankings. É assim que se colocam aos sistemas de ensino novos desafios. Estes não podem ficar mais pelo velho objetivo de ensinar a ler, escrever e contar[2]. Preparar os jovens para uma cidadania plena implica, da parte dos professores de Matemática, nomeadamente, que assumam que “a Matemática pode ajudar os jovens no comprometimento com as suas obrigações, na promoção da equidade e da democracia, da dignidade e da paz, para toda a humanidade” (D’Ambrosio, 1999, p. 131). Este compromisso, que D’Ambrosio advoga para a matemática e os professores, deverá ser partilhado por todos os professores, de todas as disciplinas. É aqui que D’Ambrosio  (D’Ambrosio, 1999, 2001, 2005) propõe um novo currículo para as escolas, o Currículo Trivium, constituído por “literacia, materacia e tecnoracia, que responde às necessidades da época que agora está a emergir” (D’Ambrosio, 2001, p. 133). Assim, temos que:

literacia é a capacidade de processar informação escrita e falada, o que inclui leitura, escrita, cálculo, diálogo, ecálogo, mídia, internet na vida cotidiana (instrumentos comunicativos); materacia é a capacidade de interpretar e analisar sinais e códigos, de propor e utilizar modelos e simulações na vida cotidiana, de elaborar abstrações sobre representações do real (instrumentos intelectuais); tecnoracia é a capacidade de usar e combinar instrumentos, simples ou complexos, inclusive o próprio corpo, avaliando suas possibilidades e suas limitações e a sua adequação a necessidades e situações diversas (instrumentos materiais) (D’Ambrosio, 2005, p. 119).

Literacia é, então aqui entendida como a capacidade de ler e escrever em sentido lato, não apenas de traduzir caracteres sequenciados, mas de analisar, processar e interpretar informação que nos pode chegar através das mais variadas formas de comunicação, como a musical, a gestual ou a sensorial. Na verdade, com a crescente importância social dos números, grande parte da informação chega-nos sob a forma de linguagem matemática, pelo que a escola deve fornecer ao indivíduo as ferramentas necessárias para a sua leitura crítica. O indivíduo deve ser capaz de, a par da análise de sinais e códigos, inferir, propor hipóteses e tirar conclusões, aquilo a que D’Ambrosio denomina de materacia, segunda componente do currículo trivium, “materacia é a mais profunda reflexão acerca do homem e da sociedade e não deveria ser restringida às elites, como tem sido no passado” (D’Ambrosio, 2007, p. 29). Por fim, temos a terceira componente – tecnoracia – que pressupõe um domínio crítico na seleção, adequação e utilização das ferramentas tecnológicas nas mais diversas situações, uma vez que a “história nos mostra que a ética e os valores estão intimamente relacionados com o progresso tecnológico” (D’Ambrosio, 2007, p. 29).

Então, o currículo escolar deverá ser construído com objetivo de ajudar os alunos a desenvolverem um sentido crítico face ao mundo que os rodeia, e proporcionar‑lhes os instrumentos intelectuais necessários para a sua compreensão plena, que engloba, naturalmente, as áreas científicas e as tecnológicas. Os professores têm, de facto, o

poder simbólico de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e (…) a ação sobre o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física e económica), graças ao efeito específico de mobilização. Só se exerce se for «reconhecido» (Bourdieu, 2001, p. 14),

Os alunos são cidadãos do Mundo, devem compreendê-lo e nele viver de forma consciente no exercício da sua cidadania, pelo que os conhecimentos matemáticos aprendidos, formal ou informalmente, têm uma assaz importância. Mas, para tal não deverão ser transmitidos de forma estéril e acrítica.

 

O Conhecimento trivium

O currículo trivium proposto por D’Ambrosio, se ensinado na escola poderá favorecer a valorização da escola e dos conteúdos matemáticos aí abordados. Porque procura uma tradução dos conceitos estudados no quotidiano dos alunos, enquanto membros de uma comunidade, onde os conhecimentos adquiridos por via informal, no dia-a-dia no ceio da sua comunidade encontram igualmente um correspondente na escola. Para isto, contribui o facto de as competências inscritas no currículo trivium, recordamos literacia, materacia e tecnoracia, não se limitarem a ser aprendidas em ambiente escolar, e muito menos são competências trabalhadas exclusivamente pelas áreas da matemática. O desempenho de tarefas do quotidiano ou intrínsecas a determinadas atividades profissionais também as desenvolverá de forma igualmente eficiente, daí afirmarmos que as literacia, materacia e tecnoracia, são competências adquiridas, constituindo-se o corpo do conhecimento trivium. Este conhecimento também é construído desempenhando de uma arte ou ofício (Vieira, 2013). No desempenho de uma tarefa, a “…REALIDADE informa o INDIVÍDUO que processa e executa uma AÇÃO que modifica a REALIDADE que informa o INDIVÍDUO… [destaque do autor]” (D’Ambrosio, 2001, p. 57). Centrando-nos no exemplo da pesca com Arte Xávega, o mestre da companha, em primeiro lugar tem de decidir se o seu barco sai para o mar, para fazer um lanço. A decisão está dependente da perceção das condições de mar e meteorológicas, se são propícias à atividade de pesca sem risco para os pescadores e para o equipamento. Fá-lo, olhando para o mar e para as condições ambientais: «lê» o que o ambiente lhe vai dizendo, infere – materacia – o significado da informação apreendida, para de seguida atuar em conformidade – tecnoracia. Numa entrevista concedida no âmbito do Projeto Fronteiras Urbanas, António Cardoso (Alemão) um pescador da Costa de Caparica de 83 anos de idade, enquanto remendava redes, ao «ver» a evolução das condições meteorológicas, afirmou “já está mau para eles irem para o mar [materacia]… Está neve [literacia]… Quando vocês chegaram, estava bom [literacia]” (testemunho de António Cardoso no âmbito do Projeto Fronteiras Urbanas, PTDC/CPE_CED/119695/2010). A «neve» a que este pescador se refere traduz o fenómeno meteorológico de condensação da humidade do ar, resultante da chegada de uma massa de ar frio vinda de norte. Este vento de norte, não apenas provoca a condensação da humidade do ar, visível em terra mas sem implicações significativas na pesca, como também provoca um movimento da massa de água superficial no sentido de terra para o mar, criando correntes marítimas e ondulação, por ação da força de coriolis, gerando condições eventualmente adversas à pesca por arte xávega. Os pescadores, ao longo dos tempos, foram desenvolvendo e transmitindo os seus conhecimentos aos mais novos. Aprenderam a ler o que a Natureza lhes diz, aprendem a interpretar o significado das mensagens, para então atuar em conformidade: decidem quando e onde fazer sair os barcos, em que condições, com que artes, para que tipo de captura, apuraram as técnicas de construção de redes, o modo de as lançarem ao mar, a melhor forma de as enrolar para ficaram prontas a realizar um novo lanço.

O clássico esquema de comunicação poderá ser traduzido por “quem diz o quê a quem e por que meio” (Leyens & Yzerbyt, 2004, p. 101) e enforma genericamente as dinâmicas na transmissão de conhecimento. Nos processos de ensino-aprendizagem, sempre mútuos e recíprocos, quem aprende, o aluno, (tomando num sentido lato) recebe permanentes mensagens de quem ensina, o professor (também num sentido lato, podendo ser uma pessoa ou qualquer entidade que emite informação). Mas, para que uma mensagem seja efetiva, é crucial que o interlocutor esteja atento e saiba descodificar a mensagem, só então poderá passar à fase seguinte do processo de comunicação, analisar os argumentos apresentados, podendo então adequar a ação aos interesses e necessidades. “Quando as pessoas recebem uma mensagem nova verifica-se uma modificação na sua estrutura atitudinal. Esta tese é uma consequência direta da teoria da aprendizagem: as pessoas serão tanto mais suscetíveis de apreender uma mensagem quanto mais ela lhes trouxer benefícios ou evitar consequências lastimáveis” (Leyens & Yzerbyt, 2004, p. 102). Face a uma mensagem verdadeiramente persuasiva o interlocutor raramente fica sem reação, não assume uma atitude acrítica, antes tornando um elemento indutor de mudança. Por tudo isto, a ação do aluno é subordinada não apenas aos argumentos contidos na mensagem, mas também pelo conhecimento trivium por si adquirido. Através de um processo empírico, a partir da análise regular e sistemática das atitudes do aluno face ao que lhe é dito e proposto, estará continuamente a adquirir e a desenvolver novas competências de literacia, materacia e tecnoracia. Ao receber a informação que lhe é transmitida, o aluno vai «lê-la», interpretá-la, fazer inferências e tirar conclusões, e implementar procedimentos consentâneos. Este conhecimento trivium, adquirido com os anos e com a experiência, são transmitidos entre gerações, pelo que não será de estranhar que alguns pescadores mais novos (geralmente filhos ou netos de pescadores e mestres de companhas) tenham criado as suas próprias companhas (Vieira & Silva, 2014, pp. 73-74).

A evolução tecnológica e o desenvolvimento económico do país trouxe, naturalmente, novos desafios a que os pescadores se foram adaptando aprendendo a «ler» o mundo em que vivem e a ensaiarem novas soluções, «vendo» os resultados (literacia), avaliando, inferindo novas hipóteses que permitissem obter melhores resultados (materacia) e implementando-as (tecnoracia). Como exemplo deste exercício recursivo de construção do conhecimento trivium está a introdução de motores nas embarcações e a substituição das tradicionais redes de algodão por nylon, a que se associou passarem a ser puxadas por aladores mecânicos acoplados a tratores.

Os barcos tradicionais da arte xávega, os meia-lua (eram barcos que quando vistos de lado têm a forma de meia lua), têm o bojo encurvado da popa à proa, tornando-as elevadas para, assim, vencerem a rebentação. Têm, igualmente, uma quilha pronunciada para conferir estabilidade e não virarem com a força das ondas e os «golpes de mar». Estes barcos são muito pesados e, como são movidos a remos, requerem um número significativo de membros embarcados. Com a possibilidade de se introduzirem motores nos barcos, rapidamente constataram que estes teriam de ser adaptados, e foram-se introduzindo alterações até que, no presente, recorrem a barcos de fundo chato e motores fora de borda, aumentando também a segurança dos pescadores: “a lancha é mais larga, aguenta-se mais” (testemunho de Mário Raimundo no âmbito do Projeto Fronteiras Urbanas, PTDC/CPE_CED/119695/2010). Mesmo tratando-se de embarcações de fundo chato, são mais largas e a potência dos motores fora de bordo permitem mais facilmente vencer os «golpes de mar», permitindo, também, reduzir o número de homens que integram uma companha, e o esforço físico exigido a cada também é menor. Fatores como o número de homens necessários para a constituição da companha, a dimensão da embarcação ou o tamanho das redes foram sendo otimizados através de um pensamento matemático, sustentado pelo conhecimento trivium dos decisores, os proprietários dos barcos e mestres da companha. De forma recursiva foram lendo os factos (literacia), fazendo inferências e tirando conclusões (materacia), para implementarem novas técnicas (tecnoracia), voltado a ler o resultado.

A constante redução do rendimento auferido com a pesca e, em dado momento, também cada vez menor mão-de-obra disponível (literacia) contribuiu para que os mestres procurassem novas soluções (tecnoracia) que lhes permitisse subsistir. Contudo, a atividade da pesca é sentida por muitos como algo de que não podem nem se querem separar. Amam o mar e a pesca, e mesmo quando deixam de ter condições físicas para embarcar e realizar tarefas mais pesadas, aplicam os seus conhecimentos e experiencia na manutenção e construção das redes das respetivas companhas. “É uma profissão muito bonita, muito mal remunerada mas muito bonita Temos uma sensação de liberdade, o mar é lindo, tudo isto é muito bonito” (testemunho de Mário Pedro no âmbito do Projeto Fronteiras Urbanas, PTDC/CPE_CED/119695/2010). No entanto Mário Raimundo (testemunho no âmbito do Projeto Fronteiras Urbanas, PTDC/CPE_CED/119695/2010, mestre de outra companha, relativamente aos seus dois filhos salienta “não quero cá ninguém… passar  frio, passo eu”.  Não quero que ela [referindo-se à filha sem emprego] passe frio, já basta eu estar a passar frio”. A dureza da profissão e esta preocupação, legítima, de proporcionar aos filhos uma vida melhor, foi afastando as pessoas da profissão de pescador.

A outra alteração significativa na Arte Xávega resultou, na década de 80 do séc. XX, da introdução de tratores com aladores mecânicos para puxarem as redes, que até então eram puxadas à mão por dezenas de homens e mulheres, a partir do areal. Os aladores mecânicos, associados à introdução do nylon permitiram fazer redes maiores e mais pesadas: “as artes eram mais leves tinham menos malhagem que era para puxar a cinto, agora estas são para puxar a trator” (testemunho de António Silva Cardoso no âmbito do Projeto Fronteiras Urbanas, PTDC/CPE_CED/119695/2010). Atendendo a que as redes são construídas pelos próprios pescadores, não havendo duas iguais, estas alterações forçaram a que os mestres as fossem adaptando à nova realidade. Foi necessário ajustar a dimensão dos vários segmentos que constituem a rede, de incrementar e otimizar a quantidade de chumbo para que afundasse o suficiente para arrastar no fundo, mas que não se tornasse demasiado pesada. “Nós hoje pescamos com métodos totalmente diferentes do que pescávamos há vinte ou trinta anos atrás. Nós estávamos habituados a um esforço de trabalho enorme, as redes… era tudo puxado à mão, não havia motores era tudo a remos” (testemunho de Lídio Galinho no âmbito do Projeto Fronteiras Urbanas, PTDC/CPE_CED/119695/2010). Mais uma vez, salientamos a presença do conhecimento trivium neste processo mental, etnomatemático, de otimização desenvolvido pelos mestres das embarcações.

Há, no entanto fatores externos à atividade piscatória que a influenciam sobremaneira. As decisões políticas do poder local privilegiam o turismo em detrimento de outras atividades económicas, e nomeadamente a piscatória. A Costa da Caparica é uma zona que tem no turismo um importante valor económico, valor que os pescadores também não pretendem ver desaproveitado, pelo que procuram manter o equilíbrio entre as tradições (enquanto valor turístico) e a implementação de soluções tecnológicas que permitam incrementar o seu rendimento económico, inseridos numa economia de mercado global. Desta forma, ainda se avistam embarcações meia-lua da Costa da Caparica, cuidadas e preservadas por alguns pescadores. Não que sejam economicamente rentáveis, mas os pescadores sabem que a arte xávega apenas poderá sobreviver enquanto arte tradicional.

Numa outra dimensão, de caráter mais político, a partilha do espaço entre os pescadores e os turistas nem sempre é fácil, ficando nos pescadores um sentimento de impotência por se sentirem relegados para a base da pirâmide social. Mário Pedro, um pescador entrevistado no âmbito do Projeto Fronteiras Urbanas (PTDC/CPE_CED/119695/2010), enquanto remendava redes no areal, salientava: “nós, entretanto, encontramos também uma dificuldade imposta pelo homem, pelas leis, pelo governo, pelas autoridades, que nos proíbem de pescar em certas zonas… nunca compreendemos o porquê disso”. Efetivamente a legislação em vigor proíbe a circulação de tratores e de barcos no areal durante o período balnear, nas praias concessionadas, o que se traduz na proibição de pescar entre as 8h00 e as 18h30. A capacidade de captura em quantidade e em qualidade de pescado com valor comercial ficou significativamente condicionada. “Só se pode pescar no verão, por causa do mar: dificuldade imposta pela natureza”(testemunho de Mário Pedro no âmbito do Projeto Fronteiras Urbanas, PTDC/CPE_CED/119695/2010 Outrora, os nomes atribuídos aos lances, resultavam da orografia do terreno de onde os barcos estavam estacionados e saíam para o mar: “era tudo marcado por terra” (Mário Pedro). Ao longo do ano deslocavam-se para zonas distintas que dependia de

onde [a pesca] estava a dar (…). A costa para o Norte sempre foi mais rica que para o Sul, o mar é mais baixinho [conhecimento trivium]. O peixe branco vem à procura das ondas [que revolvem o fundo], que é para ir à procura de isca”. Na zona onde atualmente há grandes limitações à pesca, por serem zonas concessionadas, não se pode pescar, porque foi ocupado pela frente urbana. “A costa não foi formada aqui por acaso. É que havia aqui uma enseada (…) quando estava bera, agradava mais sair ao mar. E ali [no atual largo Vasco da Gama], chamavam-lhe o alto. Era onde [os mestres] iam ver o mar… ver os alcatrazes a cair… agora não há nada, é sair ao mar e pescar. (Mário Pedro).

 

Entre o pescado capturável pela arte xávega economicamente mais rentável estará a sardinha e a lula, que apenas podem ser pescadas durante o período de luz. As decisões políticas e a legislação em vigor não consideram este facto, que condiciona fortemente a rentabilidade económica da pesca pro Arte Xávega na zona da Costa da Caparica. A proibição de pescar na zona marítima da frente urbana da Costa de Caparica interditou aos pescadores  uma “zona (…) zona riquíssima de pesca. E portanto ao sermos proibidos de pescar naquela zona, nós pescadores fomos altamente prejudicados…” (testemunho de Lídio Galinho no âmbito do Projeto Fronteiras Urbanas, PTDC/CPE_CED/119695/2010). Durante a época balnear, que decorre entre maio e setembro (definida anualmente por legislação específica), o período de pesca é fortemente condicionado, como já foi referido, e no restante período do ano, é muito frequente que as condições de mar não permitam que os barcos se façam ao mar. Acresce que nas áreas não concessionadas não existem corredores de acesso à praia para os tratores, barcos e respetivas companhas. Quando associado a este facto, se associa o encerramento da Docapesca[3] em Pedrouços e a necessidade de intermediários, para comercializarem o pescado, a rentabilidade económica da pesca artesanal ficou fortemente condicionada: “ao fecharem a Docapesca de Lisboa foi a grande machadada que deram nos pescadores locais e também nacionais, ficámos sem porto de abrigo, tínhamos uma lota a funcionar 24 horas sobre 24 horas, em que nós podíamos pescar durante a noite toda, durante o dia todo e sabíamos que o nosso peixe ia ser escoado.” (testemunho de Lídio Galinho no âmbito do Projeto Fronteiras Urbanas, PTDC/CPE_CED/119695/2010). Por outro lado, o preço do pescado na lota é manipulado pelos intermediários no sentido de comprar o peixe na lota a baixo preço, para potenciarem os seus lucros. “Hoje há uma disparidade muito grande entre o pescador e o consumidor. Nós vendemos muito barato, quem consome, compra muito caro” (Lídio Galinho). Ao nível da legislação internacional, uma vez esgotadas as quotas de determinadas espécies de peixe, pelo maior volume de capturas da pesca industrial, a pesca artesanal e local fica impossibilitada de as comercializar, devolvendo-as diariamente ao mar, apesar de desenvolverem um esforço de pesca irrelevante, quando comparado com as quotas definidas para os países da União Europeia. (Vieira & Silva, 2014).

 

Conclusão

Embora seja já um lugar‑comum afirmar que a educação tem como função preparar o indivíduo para uma cidadania plena, criando as condições para que cada um possa maximizar o seu potencial criativo e adquirir e desenvolver as suas capacidades, o papel da matemática académica, nos últimos anos, tem vindo a contrariar este desidrato. Tem vindo a ser cooptada pela necessidade de treinar os alunos no sentido de melhorar o seu desempenho em testes padronizados, como o TIMSS ou o PISA (esta «necessidade» dos sistemas educativos relaciona-se com a associação feita entre os níveis de desempenho dos alunos e a capacidade produtiva dos países). Perdem-se, desta forma, aquelas que consideramos deverem ser as funções primeiras dos sistemas educativos, como o desenvolvimento da autoconfiança e a aquisição de conhecimentos e competências essenciais ao exercício de uma cidadania plena.

A Matemática ensinada nas escolas é, efetivamente, um pilar das sociedades atuais. Mas a forma como está estruturada torna-a inútil na perspetiva de determinados grupos sociais, como será o caso dos pescadores. Acresce que a forma como é ensinada pode afastar a escola dos seus interesses e prioridades pessoais, contribuindo para o agudizar da descriminação social, embora não seja facilmente reconhecido pelos decisores políticos, a nível local ou nacional. O argumento «não ser bom a matemática» serve, por vezes, o propósito de justificar as opções tomadas para o percurso académico do aluno, ou, em certos casos, de fundamentação para um abandono escolar precoce. Com este estudo não podemos afirmar que os pescadores da Costa da Caparica tenham desenvolvido uma matemática, pelo menos na forma como o mundo ocidental a entende e é difundida nas, e pelas, escolas. Desenvolveram, sim, estilos de observar, de classificar, de ordenar, de quantificar, de medir, de inferir, que são categorias de conhecimento dos comportamentos humanos. Desenvolveram a sua etnomatemática que lhes permite subsistir numa sociedade de mercado, onde a industrialização e o desenvolvimento do turismo, impõem fortes condicionalismos na viabilidade económica. “Naturalmente, em todas as culturas e em todos os tempos, o conhecimento é gerado por indivíduos e povos que têm, ao longo de suas existências e ao longo da história, criado e desenvolvido técnicas de reflexão, de observação, e habilidades (artes, técnicas, techne  ticas) para explicar, entender, conhecer, aprender para saber e fazer como resposta a necessidades de sobrevivência e de transcendência (matemá), em ambientes naturais, sociais e culturais mais diversos (etnos)” (D’Ambrosio, 2013, p. 47). Os pescadores de arte Xávega da Costa da Caparica adquiriram, e continuam a desenvolver um conhecimento trivium que lhes permite hibridizar as suas tradições, o «velho», com a sociedade de mercado e uma aposta do poder político no turismo, o «novo». Este seu conhecimento de literacia, materacia e tecnoracia, desenvolvido ao longo de gerações permite-lhes manter economicamente viável a Arte Xávega, enquanto arte de pesca tradicional.

 

 

 

 

 

Bibliografia

Barroso, J. (1999). O caso de Portugal. In J. Barroso (Ed.), A Escola entre o Local e o Global, Perspectivas para o Século XXI. Lisboa: EDUCA.

Barroso, J. (2003). Introdução. In J. Barroso (Ed.), A Escola Pública. Regulação Desregulação Privatização. Porto: ASA editores.

Bourdieu, P. (2001). O Poder Simbólico (4ª ed.). Algés: Difel.

D’Ambrosio, U. (1999). Literacy, Matheracy, and Technoracy: a Trivium for Today Mathematical Thinking and Learning, 1(2), pp. 131-153.

D’Ambrosio, U. (2001). Etnomatemática: elo entre as tradições e a modernidade. Belo Horizonte: Autêntica.

D’Ambrosio, U. (2005). Sociedade, Cultura, Matemática e seu Ensino. Educação e Pesquisa, 31(001), 99-120.

D’Ambrosio, U. (2007). Peace, social justice and ethnomathematics. The Montana Mathematics Enthusiast, 1, 25-34.

D’Ambrosio, U. (2013). Educação Matemática para Cidadania e Criatividade. Educação e Matemática: Revista da Associação de Professores de Matemática, 125, 44-51.

D’Ambrósio, U., & Rosa, M. (2008). Um diálogo com Ubiratan D’Ambrósio: uma conversa sobre etnomatemática. Revista Latinoamericana de Etnomatemática, 1(2), 88-110.

Formosinho, J., & Machado, J. (2008). Currículo e Organização: as equipas educativas como modelo de organização pedagógica. Currículo sem Fronteiras, 8(1), 5-16.

Foucault, M. (1977). Vigiar e Punir (10ª ed.). Petrópolis: Editora Vozes.

Freire, P. (1997). Pedagogia da Autonomina: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra.

Gimeno Sacristán, J. (2008). El valor del tiempo en educatión. Madrid: Ediciones Morata.

Kilpatrick, J. (1999). Investigação em educação matemática e desenvolvimento curricular em Portugal: 1986-1996. In M. Pires, C. Morais, J. P. Ponte, M. H. Fernandes, A. Leitão & M. L. Sarrazina (Eds.), Caminhos para a Investigação em Educação Matemática em Portugal. Bragança: Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação

 

Leyens, J.-P., & Yzerbyt, V. (2004). Psicologia Social. Lisboa: Edições 70.

Sá, A., Almiro, J., Cavaleiro, J., Reis, L., Abreu, M., & Zenhas, M. d. G. (2004). Jogos do Mundo. Tondela: Associação de Professores de Matemática.

Tyack, D., & Cuban, L. (1995). Tinkering toward Utopia: a Century of Public School Reform. London: Harvard University Press.

Vieira, N. (2008). Entrevista a Ubiratan D’Ambrósio: Para uma abordagem didáctica multicultural: o Programa Etnomatemática. [Entrevista]. Revista Lusófona de Educação(11), 163-168.

Vieira, N. (2013). Os Tempos que o Tempo tem: o conhecimento trivium dos professores de matemática em período de mudança. Ph.D, Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias.

Vieira, N., & Silva, F. (2014). Histórias de Vid. In M. Mesquita (Ed.), Relatório de Progresso II – Projeto Fronteiras Urbanas (pp. 67-81). Lisboa: Fundação para a Ciência eTecnologia.

 

 

 

[1] O disco de cobre revestido a ouro que a sonda espacial Voyager transporta, como cartão-de-visita para outras formas de vida que surjam no seu caminho, tem gravado símbolos numa linguagem puramente matemática. Os responsáveis da NASA acreditaram que esta será a única linguagem que pode superar o problema da incomensurabilidade entre civilizações. A NASA disponibiliza fotografias desta placa na sua página: http://voyager.jpl.nasa.gov/spacecraft/scenes.html (consultado em 10 de julho de 2011).

[2] Os termos ler, escrever e contar, resultam do sistema americano que desde a sua fundação seguiu o lema dos três R’s (Reading wRiting e aRithmetic) (D’Ambrosio, 2001, p. 65).

[3] Entreposto comercial destinado ao leilão do pescado, permitindo a venda direta do pescador aos grandes consumidores, nomeadamente  cadeias de supermercados e restaurantes.

Parlamento Urbano

Transparência e Dados Abertos

 

Projecto Fronteiras Urbanas

Colectivo Zuloark

 

Trienal_PU

O custo do espaço público. (A rede que liga todos os espaços públicos, as informações sobre o uso de energia elétrica, água , etc., não é conhecido, por quê? Seria importante, a fim de saber qual é o custo real do espaço urbano.) Comunicar e tornar explícito o que e como está acontecendo nas diferentes partes da cidade .

Há dados que explica cada cidade, que a justifica, que a move. Quanta água é necessária num canteiro, qual é quantidade de eletricidade gasta num poste da praça pública, quantas toneladas de lixo são recolhidas , qual é o custo de obras de manutenção, quanto dinheiro é separado para a promoção de atividades.

Podemos pensar no desenho de estratégias de transparência que tornam possíveis democratizar as informações que projetam nossas cidades. Conseguir os tradutores “corretos” pode significar estabelecer comportamentos mais conscientes e responsáveis ​​.

 

Mecanismos .

Determinar os possíveis formatos em que as informações poderiam ser transparentes.

Que tipo de informação é relevante e através de quais dispositivos poderiam ser obtidas.

Quais sistemas transparentes que já existem atualmente .

Declaração Universal dos Direitos da Água

A Declaração Universal dos Direitos da Água foi proclamada com o objectivo de atingir todos os

indivíduos, povos e nações, para que homens e mulheres, tendo permanentemente a Declaração

presente no seu espírito, se esforcem, através da educação e da formação regular, em desenvolver o

respeito pelos direitos e obrigações enunciados e por forma a que assumam, com medidas

progressivas de ordem nacional e internacional, o seu reconhecimento e efectiva aplicação.

Art. 1º – A água integra o património do planeta: cada um dos continentes, povo, nação, região,

cidade, cidadão é plenamente responsável perante cada um e todos.

Art. 2º – A água é a seiva do planeta: é a condição essencial de vida de todo ser vegetal, animal ou

humano. Sem a água não se poderia conceber a atmosfera, o clima, a vegetação, a cultura ou a

agricultura. O direito à água é um dos direitos fundamentais do ser humano: o direito à vida, tal

como estipulado no art.º 3.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Art. 3º – Os recursos naturais de transformação da água em água potável são lentos, frágeis e muito

limitados. Assim sendo, a água deve ser manipulada com racionalidade, precaução e parcimónia.

Art. 4º – O equilíbrio e o futuro do planeta dependem da preservação da água e de seus ciclos. Estes

devem permanecer intactos e funcionando normalmente para garantir a continuidade da vida sobre a

Terra. Este equilíbrio depende, em particular, da preservação dos mares e oceanos, por onde os

ciclos começam.

Art. 5º – A água não é somente uma herança dos nossos predecessores: é, sobretudo, uma doação

aos nossos herdeiros. A sua protecção constitui uma necessidade vital, assim como uma obrigação

moral do homem para com as gerações presentes e futuras.

Art. 6º – A água não é uma doação gratuita da natureza: tem valor económico, importando saber

que é, por vezes, rara e dispendiosa e que pode muito bem escassear em qualquer região do mundo.

Art. 7º – A água não deve ser desperdiçada, nem poluída, nem envenenada. De maneira geral, a sua

utilização deve ser feita com consciência e discernimento para que não se chegue a uma situação de

esgotamento ou de deterioração da qualidade das reservas actualmente disponíveis.

Art. 8º – O uso da água implica o respeito à lei: a protecção constitui uma obrigação jurídica para

todo homem ou grupo social que dela beneficie. Tal questão não deve ser ignorada nem pelo

homem nem pelo Estado.

Art. 9º – A gestão da água impõe um equilíbrio entre os imperativos de sua protecção e as

necessidades de ordem económica, sanitária e social.

Art. 10º – O planeamento da gestão da água deve levar em conta a solidariedade e o consenso em

razão de sua distribuição desigual sobre a Terra.’’

22 Março 1992

Declaração – Água Já

Comunidade Bairro

TERRAS DA COSTA

 

Movimento

ÁGUA JÁ!

 

APOIO A

Declaração Universal dos Direitos da Água

 

Trienal de Arquitetura de Lisboa

Close Closer

Sala da Nação

Embaixada de Terra Nenhuma

 

Assinaturas voluntárias colhidas no período

24 a 28 de Setembro de 2013

 

Doc.: Tipo e Nº Nome Assinatura

Campanha de limpeza – Comunidade Bairro

COMUNIDADE BAIRRO

TERRAS DA COSTA

 

SEMANA DA CAMPANHA DA

 

LIMPEZA NO BAIRRO

 

de 23 a 29 de Setembro

 

 

Dia 29 as 10 horas

 

LIMPEZA GERAL

Cada localidade começa por limpar seu espaço e sentido ao Campo da Bola onde faremos uma

Festa de Confraternização

Contribuição para a festa de 1,00€ que pode ser entregue a qualquer um dos membros da nossa Comissão de Bairro

 

SÃO TODOS BEM-VINDOS

 

 

COLABORAÇÃO

PROJETO FRONTEIRAS URBANAS

LAPSE TEATRAL: Humildes, Humilhados, Sem Água

Sala da Nação – Embaixada de Terra Nenhuma

24.Setembro.2013

 

LAPSE TEATRAL: Humildes, Humilhados, Sem Água

 

Peça de Euclides Fernandes

 

 

Personagens

Presidente da Repúdia – Exmo. Caníbal Mandioca Cabaco Sirbia

Presidente da Carâmba de Almeida – Exma. Amarela Emídia Gouza Néctar

Presidente da Disjunta Fregueses –  Exmo. Anatóli Nevoeiro

Presidente do Sindilato dos Pescados – Exmo. Sr. Lindo Galo

Cabo Rasíssimo Chicote – Guardadores de Notas Roubadas (GNR)

Preto Cabelo Bedju – Morador das Terras de Bariga Cheia (Narrador)

 

Figurinos

Criação de cada ator para o respectivo papel

 

Cenário

Projeção de Cenas da Costa Cabariga em Time Lapse: Toda a peça passa-se na Costa Cabariga; lugar imaginário onde efetivamente os habitantes não têm direito a água.

 

 

 

 

ATO ÚNICO

 

Preto Cabelo Bedju:

_Quantas Costas Cabariga! São muitas… Neste caso, esta Costa Cabariga fica em Portróika e eu…. sou o Preto Cabelo Bedju, conhecido como o que não penteia.

 

Presidente da Pepúdia:

_Eu, Caníbal Mandioca Cabaco Sirbia, Presidente da Repúdia de Portróika, aqui presente para escutar as almas da Almeida. Em primeiro lugar, gostaria de ouvir a Exma. Senhora Amarela Emídia Gouza Nectar.

 

Presidente da Carâmba de Almeida:

_Eu, Presidente da Carâmba de Almeida, dona da minha alma da minha Almeida de onde abraço todos os Lisboetas que querem disfrutar do meu coração de sangue puro que é a minha linda Praia de Costa Cabariga. Desta praia saem os melhores pescados. Também dona dos terenos férteis das Terras de Bariga Cheia e da água de todos que quero dar. Muito tenho feito por esta Praia Costa Cabariga e Terra de Bariga Cheia e tenho resistido, até agora, que dou a água aqueles que merecem – Não aos invasores!

 

Presidente da Disjunta:

_Anatóli Nevoeiro…. este sou eu! Presidente Invicto da Disjunta Fregueses e sempre Profeta da Escola Secundária Emiliano Sorte de Capa Passada Pelo Focinho do Touro. Devo dizer que a única coisa que concordo com a . Senhora Amarela é que ela tem resistido com eu – Grande Anatóli Nevoeiro, dou a água aqueles que merece – Não aos invasores das Terras da Tia Dele! O resto é tudo falso. Quem tem abraçado os lisboetas sou eu – Grande Anatóli Nevoeiro! Quem tem abastecido a lotaria de pescados e os mercados de Costa Cabariga sou eu – Grande Anatoli Nevoeiro! Só não abraço aos invasores dos terenos das Terras de Bariga Cheia _Não aos invasores!

 

Presidente do Sindilato:

_Eu, Lindo Galo – Presidente do Sindilato dos Pescado digo-vos: Os nossos dois representantes locais mentiram em quase tudo! Não posso deixar de desmentir que a lotaria é abastecida por nós… que somos os pescados! Os dois representantes só não mentiram ao que diz respeito a água. É verdade! Eles têm resistido muito e firmes em dar a água aqueles que eles não querem. Todos os moradores da Costa Cabariga tem Direito a Água, inclusive os moradores, há três gerações, das Terras da Minha Tia… Tia Moscovina!

 

Cabo Rasíssimo Chicote:

_Eu, Cabo Rasíssimo Chicote, funcionário da Guarda Notas Roubadas, vulga GNR, digo ao Exmo. Presidente da Disjunta e à Exma. Presidente da Carâmba que se quiserem convenço meus colegas a irmos chicotear os que não merecem água –  Não aos invasores!

 

Preto Cabelo Bedju:

Possibilidade 2:

_ Quem está disposto a nos ajudar? Sabemos, nas Terras da Nossa Tia, que precisamos nos organizar e muito temos feito por isso. Porém, sabemos que nas Terras de Bariga Cheia, vulga Terras da Nossa Tia, as Bariga tão sem água e sabemos, também, que o amor pelo poder afasta os representantes locais do poder do amor, da compaixão e dos direitos humanos. Sim aos Moradores!!!!!!!

Água Já!