Colloque internationale: Cultures, éducation, identité: recompositions socioculturelles, transculturalité, interculturalité

Curriculum Trivium, dialogue interculturel et citoyenneté

Une ethnographie critique d’un projet d’éducation communautaire

Isabel Freire

Ana Paula Caetano

Mônica Mesquita

Resumé

Dans cette communication, nous partons de l’expérience de rencontre interculturelle entre les trois communautés différentes – l’équipe de recherche universitaire et deux collectivités de une même ville (une communauté de pêcheurs et une autre vivant dans un bidonville), qui sont liés par le développement du projet scientifique appelé «Frontières Urbaines: la dynamique des rencontres culturelles dans l’éducation communautaire». C’est un projet d’éducation communautaire, soutenue par une vision transdisciplinaire de la connaissance, a comme référentiel  théorique le concept de curriculum trivium, qui vise à promouvoir la pleine citoyenneté et la justice sociale (D’Ambrosio, 2009). Ce nouveau concept de curriculum reprend le concept de pédagogie critique de  Freire (1980). A travers d’unerecherche d’ethnographie critique (Thomas, 1993), ce projet vise à entendre les voix trouvées dans les communautés multiculturelle, pour comprendre les dimensions intra et interculturelles (Abdallah-Pretceille, 2005), pour clarifier les processus éducatifs et promouvoir la reconnaissance de ces communautés par la société dans son ensemble, en tant que partie intégrante de cette société. De l’analyse des processus de dialogue et de participation vécus par les communautés, nous discutons des concepts d’inter et de transculturalité.

Mots-clés: curriculum trivium, rencontres interculturelles, transculturalité, interculturalité, éducation communautaire.

Introdução à problemática

A apresentação desta comunicação apoia-se no processo de investigação realizado no âmbito do Projet «Frontières Urbaines (Fronteiras Urbanas): la dynamique des rencontres culturelles dans l’éducation communautaire » [FU][1]. Três postulados subjazem à conceção e desenvolvimento deste projeto :

  • tous les peuples font partie d’une civilisation planétaire et les rencontres culturelles enrichissent tout le monde (Morin, 2002);
  • a recuperação da dignidade cultural de todos os povos exige o diálogo transcultural e transdisciplinar (D’Ambrósio, 1999);
  • o diálogo é uma condição existencial (Freire, 1980).

É através da educação que estas ideias/ideais humanos tomam forma. O projeto FU surge, assim, da vontade de desenvolver ações concertadas com vista a uma educação comunitária. Ou seja, uma educação que devolva dignidade, sentimentos de pertença e consciência cívica a populações excluídas e marginalizadas, como é o caso das comunidades locais envolvidas neste projeto. Entendemos que o desenvolvimento do sentido de comunidade é, atualmente, um desafio crucial para a educação, porém, toma uma pertinência muito especial nos territórios habitados por seres humanos marginalizados, clandestinos, votados ao ostracismo, como é muitas vezes o caso dos imigrantes. Neste contexto, a problemática que aqui trazemos não se resume apenas a uma problemática científica, mas incorpora uma problemática social e política. A ação dos membros da comunidade científica que participam no projeto orientou-se no sentido de colocar a ciência ao serviço do desenvolvimento local e da construção da cidadania com populações excluídas politicamente, assumindo com elas um compromisso ético e político.

Curriculum Trivium et alphabétisation critique

O conceito e a prática do curriculum trivium (D’Ambrósio, 2009) e da alfabelização crítica (Freire, 1980) surgem, assim, como epistemologias da ação e categorias de análise na compreensão, recognição e fortalecimento nos processos de educação comunitária empreendidos. Para D’Ambrósio, o curriculum trivium organiza-se segundo três grande vertentes formativas:

    • Literacia, que pressupõe o uso de instrumentos comunicativos e se traduz na capacidade de processar criticamente informação escrita e falada, o que inclui leitura, escrita, cálculo, diálogo, ecálogo (conversação à distância), mass media, internet.
    • Materacia, que pressupõe o uso de instrumentos analíticos e se traduz na capacidade de interpretar e analisar criticamente sinais e códigos, de propor e utilizar modelos e simulações na vida quotidiana, de elaborar abstrações sobre representações do real.
  • Tecnoracia, que pressupõe o uso de instrumentos materiais e se traduz na capacidade de usar e combinar criticamente instrumentos, simples ou complexos, inclusive o próprio corpo, avaliando suas possibilidades e suas limitações e a sua adequação a necessidades e situações diversas.

 

Por se focar nos processos formativos e na transversalidade das capacidades que aqueles fomentam, o curriculum trivium implica participação e envolvimento, traduzidos em projetos, reflexões sobre a ação e o quotidiano dos participantes, tomadas de decisão e discussões críticas. Estes processos, focados na vertente formativa da educação, são complementados e articulados com a vertente informativa, mais orientada para a utilização de meios e instrumentos como livros, palestras, blogs, ou a simples audição e leitura que proporcionam o acesso aos meios de comunicação de massas, como a imprensa, a televisão ou a internet. A informação é fundamental para as tomadas de decisão na vida quotidiana e os educadores devem criar condições para a formação dos cidadãos a este nível, estimulando a crítica sobre o que se viu, se observou, se leu, se imaginou. Como afirma D’Ambrósio (2009), a materacia, na medida em que desenvolve a capacidade de interpretar e descodificar sinais e códigos, bem como elaborar abstrações sobre o real, é um instrumento fundamental para a tomada de decisões. O desenvolvimento deste currículo é ele próprio um exercício de transdisciplinaridade, dado que em cada atividade contempla o desenvolvimento de capacidades de literacia, de materacia e de tecnoracia, como exemplificaremos mais adiante. Assim, a sua prática e a sua compreensão devem ser perspetivadas numa visão complexa e sistémica da formação e do desenvolvimento humano (D’Ambrósio, 2011; Morin, 2002).

As propostas educativas de Ubiratan D’Ambrósio, consultor científico deste projeto, retomam a visão crítica de educação de Paulo Freire, na qual o conceito de conscientização é central. Este pedagogo foi também uma referência principal no projeto FU, uma fonte constante de orientação dos investigadores e educadores para o exercício de uma pedagogia da autonomia e da liberdade, voltada para a formação de sujeitos com consciência crítica e sentido de cidadania, que sejam elos transformadores coletivos para que estes conquistem visibilidade e reconhecimento cívico.

Entre a multiculturalidade e a transculturalidade – um conceito alargado de interculturalidade

Em Ensaio (1940), Fernando Ortiz apresenta-nos o termo – transculturalismo – definido como “ver a si no outro”, apesar de muitas vezes ser também entendido como algo que se estende através de todas as culturas ou ainda trabalhado como sendo a reinvenção de uma nova cultura comum (Mesquita, 2014). Esta é também a perspetiva de D’Ambrósio quando, ao falar de transdisciplinaridade nos diz que esta

“reside numa postura de reconhecimento que não há espaço e tempo culturais privilegiados que permitam julgar e hierarquizar, como mais correto ou mais certo ou mais verdadeiro (…). A transdisciplinaridade é, na sua essência, transcultural.” (D’Ambrosio, 2011, p.11).

Esta transculturalidade é, ao mesmo tempo, a assunção do que já somos – unos na nossa humanidade comum – mas também a projeção de uma utopia do todo – um processo de devir. Para isso ser possível é preciso entender que há uma interconexão interna e invisível e que esta pode ser densificada numa rede de interdependências múltiplas. Mas, se somos unos e podemos ainda ser mais, também somos diversos, múltiplos. Por isso, “o conceito de multiculturalidade leva-nos a aceitar a diferença, a fronteira, a exterioridade da cultura do Outro” (Caetano, no prelo).

O conceito de interculturalidade propõe-nos a ponte, a travessia e o encontro. Em simultâneo reconhece o múltiplo, facilita o encontro que o vai transformar e radica na unidade que torna possível tudo o mais. Assim,

“entende-se a interculturalidade como um processo de transformação social que abrange processos transculturais, onde a dimensão cultural se dilui no todo comum, e processos multiculturais onde ela se evidencia, sem que em nenhum caso se anule” (Vassalo & Caetano, no prelo).

Concordamos com Abdallah-Preteceille (2005) quando, ao defender uma epistemologia do intercultural, sublinha que “l’interculturel implique une recherche du noyau de sense” e, por isso, não se trata simplesmente de um método (de pesquisa ou de ação), mas também de uma “ontologia” que, como diz a autora, “se construit au fur et à la mesure de l’observation et de l’élucidation du rapport à autrui” (p. 55/56).

Le projet Frontières Urbaines[2]

Le projet FU prend forme dans l’interrelation entre la communauté académique et scientifique et deux communautés locales, se trouvant dans un même territoire – le bourg de pêcheurs de Costa de Caparica, situé près de Lisbonne. Les deux communautés choisies comme champ d’intervention sont des communautés avec lesquelles certains des participants de la communauté académique avaient déjà travaillé auparavant, dans le cadre d’un autre projet d’éducation communautaire. Une communauté de pêcheurs, dont l’histoire remonte au début du XXe siècle, et où plusieurs flux migratoires, de deux régions du pays, convergent. Une autre communauté d’un quartier illégal, communauté Quartier (tradution de Bairro) regroupant en grande majorité des groupes d’immigrés en provenance des pays africains qui ont été anciennes colonies portugaises (principalement capverdiens), des tsiganes et des migrants d’autres régions du Portugal.

Ce projet vise à l’autonomisation des individus et des communautés, par le biais de la promotion de pratiques éducatives, sociales et culturelles qui favorisent l’organisation, l’interaction et l’intégration dans des communautés plus élargies.

A equipa de investigadores e de consultores do projeto é constituída por investigadores de variadas áreas científicas, desde a Antropologia, a Física, a Arquitetura, a Educação, as Artes Plásticas, a História, a Biologia, constituindo-se como uma equipa multidisciplinar, ancorada numa perspetiva de abordagem ao conhecimento complexa, sistémica e transdisciplinar .

La méthodologie de recherche

Le projet FU s’encadre, du point de vue méthodologique, dans la perspective de l’ethnographie critique (Thomas, 1993).

L’ethnographie critique utilise les procédures et les techniques de l’ethnographie classique visant, toutefois, d’impliquer les membres des communautés dans les processus de changement intentionnel, pour lesquelles participe l’ethnographie, en fournissant des informations et un point de vue critique sur leurs vies.

Le travail de recherche que traitons ici fait partie de ce projet qui est plus vaste. As análises e interpretações, apoiam-se nas múltiplas notas de campo, fotografias, videogravações e também em entrevistas de focus group realizadas com cinco mulheres participantes na escola de alfabetização crítica da comunidade Bairro.

Alfabetização Crítica e Curriculum Trivium no FU – um caminho de transdisciplinariedade

Estas afirmações, contidas no Relatório Final do Projeto FU (Mesquita, 2014, p. 50), espelham bem a filosofia orientadora e a práxis que foram assumidas:

“Procurou-se, permanentemente, que a busca teórica fosse desenvolvida num processo dialógico crítico com os membros das comunidades, com o intuito de fortalecer o que Ubiratan D’Ambrosio (2002) chama de triângulo da vida. Este assenta numa ética de diversidade que se pauta em: “1) Respeito pelo outro, com todas as suas diferenças; 2) Solidariedade com o outro na satisfação das necessidades de sobrevivência e transcendência; e 3) Cooperação com o outro na preservação do patrimônio natural e cultural comum”. Segundo D’Ambrosio, esta ética conduz à Paz.”

Este processo de encontro e diálogo foi concretizado através das três dimensões do projeto, que surgiram face aos interesses, necessidades e desejos das duas comunidades locais: a alfabetização crítica, as histórias de vida e a cartografia múltipla, além de uma outra dimensão transversal – a mediação comunitária (Freire & Caetano, no prelo). Aqui iremos deter-nos fundamentalmente na primeira destas dimensões, a da alfabetização crítica. Contudo, dada a perspetiva, complexa e sistémica, em que o projeto assenta, as outras dimensões surgem naturalmente ligadas.

Ao longo dos dois anos de duração do projeto FU, realizaram-se múltiplas atividades com os membros das três comunidades, quer nos territórios onde as comunidades locais estão implantadas, quer noutros espaços geográficos e culturais, como sejam universidades, museus, associações, casas de cultura, ou autarquias.

A alfabetização visou responder especialmente ao desejo de habitantes de uma das comunidades locais (a comunidade que designamos de Bairro), de desenvolverem a literacia em sentido clássico, ou seja, a aprendizagem da leitura e da escrita. Constituiu-se, assim, um grupo de dez mulheres com idades diversas (entre os trinta e poucos anos e os oitenta). Todas eram de nacionalidade cabo-verdiana e faziam parte da comunidade Bairro. O espaço físico da escola era um pequeno telheiro da habitação de um morador. O grupo nem sempre foi o mesmo, embora seis dos seus membros o tenham constituído na maior parte do tempo de duração da escola (cerca de ano e meio), em encontros pedagógicos bissemanais de cerca de hora e meia. O trabalho das educadoras (membros da comunidade académica e da comunidade local) num primeiro momento focou-se no desenvolvimento da literacia em sentido clássico, seguindo com adaptações o método de alfabetização de Paulo Freire (1980). Pretendeu-se criar condições de iniciação à escrita e à leitura (para a maior parte das mulheres participantes) e de desenvolvimento de competências de leitura e escrita para uma delas (para mais detalhe ver Caetano & Freire, 2014). Contudo, existiu sempre uma preocupação de promoção da literacia no sentido amplo que D’Ambrósio e Paulo Freire lhe atribuem. A escola foi espaço de encontro e de aprendizagem propiciador de uma literacia crítica que se estende a outras áreas, nomeadamente à da participação cidadã. Foi neste sentido que, por exemplo, se integrou na escola a análise das situações de violência sobre os moradores do Bairro, muitas vezes gratuita, por parte das forças policiais locais, com a participação de um membro dessas forças policiais nas sessões de alfabetização. Nestes encontros, de um modo particular as moradoras mais idosas, que faziam parte do grupo, assumiram um forte protagonismo e demonstraram uma capacidade de diálogo, que gerou entendimentos mútuos e mudanças relevantes nesta dimensão da vida do Bairro. Estes processos revelaram-se também muito significativos quer para o empoderamento pessoal dos participantes diretos, quer para dar visibilidade e reconhecimento ao coletivo. Como Ubiratan D’Ambrosio várias vezes sublinhou em encontros de reflexão sobre o projeto, “o ponto de partida de uma educação comunitária deve ser uma reflexão sobre a violência”.

Este é um mero exemplo, de entre muitos outros acontecimentos similares nos quais podemos rever a prática de uma pedagogia baseada na conscientização e promotora de literacia crítica. Contudo, o trabalho educativo na escola de alfabetização não se esgota na vertente literacia. Poderemos facilmente encontrar nele a vertente tecnocracia, quando, por exemplo, pensamos no trabalho pedagógico desenvolvido no sentido do treino da motricidade fina, com vista à criação de condições de coordenação motora para a prática da escrita, ou o exemplo do trabalho do artista-pintor João Moreira, integrado no FU, com as crianças e com os adultos do Bairro, que com ele produziram uma grande diversidade de trabalhos artísticos.

O projeto FU ajudou a impulsionar a criação de um grupo de batuko[3], dando corpo a um desejo dos moradores previamente existente. Trata-se de uma prática cultural ancestral em Cabo Verde, muito associada aos ambientes festivos e à alegria, em que as mulheres cantando e dançado se reforçam mutuamente nessa comunhão de alegria. A maior parte das mulheres que iniciaram e integraram o grupo, faziam parte da escola e aí se desenvolveu um trabalho de escrita das letras das canções cantadas nas sessões de batuko.

A escola não se restringiu ao trabalho com estas mulheres do núcleo de alfabetização. Ela constituiu o centro do qual irradiaram muitas outras ações, que se expandiram, não somente à comunidade Bairro, como à comunidade piscatória. Ainda na comunidade Bairro, a escola de alfabetização crítica foi a catalisadora de movimentos políticos que deram origem, quer à organização de uma comissão de moradores, quer à reivindicação junto da autarquia local da construção de uma cozinha comunitária, quer ainda à organização de um movimento cívico de reposição dos direitos de comercialização num mercado ambulante, por parte da comunidade cigana, direitos esses que lhe haviam sido confiscado anteriormente. Todos estes movimentos exigiram não só pesquisa e recolha de informação, discussões orientadas para a análise crítica dos problemas e das soluções e a escrita final coletiva de cartas para organismos oficiais. Nestes processos de alfabetização crítica se articulam elementos de desenvolvimento da literacia, da materacia e da tecnocracia.

Também a dimensão do projeto que designámos por cartografia múltipla foi incluída nos processos de alfabetização. A cartografia múltipla correspondeu ao desejo e necessidade dos membros da comunidade Bairro de fazer um levantamento e mapeamento exaustivo das habitações e moradores no Bairro e também dalguns aspetos da pesca, por solicitação da comunidade piscatória. Alguns dos membros da escola de alfabetização participaram no processo no Bairro e a investigadora responsável por esta parte do projeto orientou sessões de formação com vista ao desenvolvimento de capacidades de leitura de mapas e orientação. Também outros investigadores fizeram, com pescadores da outra comunidade uma pesquisa e mapeamento dos pontos de referência estáticos da pesca e a análise dos mesmos, face ao GPS, e procederam à escrita coletiva de uma carta aos responsáveis pela pesca (com cópia para a polícia marítima). Trata-se de atividades nas quais igualmente se combina o desenvolvimento da materacia, com o da tecnocracia e da literacia.

São alguns exemplos, retirados de uma vasta panóplia de ações promotoras do desenvolvimento dos participantes neste projeto, que ilustram não só a transversalidade das vertentes do curriculum trivium, como a transdisciplinaridade e transculturalidade na abordagem educativa do mesmo. Nestes processos, havendo educadoras “residentes” (duas educadoras investigadoras, uma das quais a coordenadora do projeto), todos eram chamados a ser educadores, desde a investigadora antropóloga, à bióloga, ao arquiteto, aos membros das comunidades locais. A Lizzi, jovem cabo-verdiana, com uma escolaridade de 12 anos, era educadora e mediadora linguística e participava sistematicamente nas sessões de alfabetização. Mas também eram educadores, o Sr. Lídio, pescador português, experiente nas artes de pesca e conhecedor da cultura local, a D. Vitória, senhora idosa cabo-verdiana, com muita sabedoria, feita de uma longa experiência de vida resiliente, e com um enorme conhecimento sobre agricultura.

Construiu-se assim um clima humano de reciprocidade e reconhecimento mútuo, que foi o esteio para a criação de uma outra escola, a Escola do Bairro, que ampliou as participações e as áreas de educação da anterior.

A multi-inter-trans culturalidade no FU

 

No projeto FU, e mais especificamente na comunidade Bairro, desenvolveu-se um processo de interculturalidade, no qual se reconhecem, simultaneamente, dinâmicas dialógicas de cruzamento de culturas que fortalecem a identidade de cada cultura e que permitem o conhecimento, reconhecimento e valorização das culturas de cada comunidade e subcomunidade, junto de outras. Esta vertente multicultural é uma dimensão fundamental de empoderamento junto de populações fragilizadas, nomeadamente pela deslocação do país de origem e pelas condições sociais e económicas em que vivem. Entre os processos de aprofundamento de cada cultura destacamos a organização de iniciativas culturais próprias, dando expressão e impulsionando movimentos internos e desejos que já existiam espontaneamente mas que ainda não tinham tido um espaço mais estruturado para se exprimir, como foi o caso da formação do grupo de batuko “Nôs terra”, a inventariação de casas e seus moradores e que constituiu um processo de recenseamento a partir do qual foi possível organizar a eleição de uma comissão de moradores. Também a formação de uma associação de pescadores, apoiada pelo projecto, desta feita na comunidade piscatória, constituiu uma forma de fortalecimento interno e de organização social. A organização de um projecto de educação não formal, como um curso de kriolu, constituiu uma outra forma de promover a cultura cabo-verdiana junto de outros, ao mesmo tempo que favoreceu a comunicação e que pode ser entendida como um passo de aprofundamento da interculturalidade.

Mas, uma visão de interculturalidade na educação comunitária levou-nos a ir mais longe neste processo de interacção, promovendo uma verdadeira transformação cultural, pelo encontro e diálogo. Para além do reconhecimento, pretende-se alertar para problemas das comunidades, ampliar a participação das comunidades em diversos fóruns e favorecer a aprendizagem de todos, com todos. Na área da comunicação e divulgação da cultura e da realidade social das comunidades, destacam-se iniciativas intracomunitárias e a apresentação de cada comunidade junto de outras, em iniciativas públicas mais abrangentes, como fóruns científicos, encontros entre comunidades, tertúlias de poesia, na bienal de arquitectura, na inauguração de uma exposição de pintura. Também a participação local, no diálogo com instâncias de poder autárquico e a colaboração entre diversos parceiros para resolução de problemas constituem formas de interculturalidade que o projecto favoreceu. Destaque, ainda, para a escola voluntária, em que participantes de diferentes comunidades aprendem uns com os outros.

Assim se vai construindo, de forma recursiva, uma comunidade mais ampla, mais entretecida, mais interdependente. Esta é uma meta transcultural, que é a assunção da humanidade comum, pela qual se almeja e se vai lentamente percorrendo o caminho de romper as fronteiras que separam e fragmentam. Trata-se de uma utopia, ao mesmo tempo que já é uma realidade – o sermos parte da mesma humanidade. Uma humanidade que se realiza na diversidade. Uma humanidade que se transforma pela autoreflexão e autocrítica, por processos dialógicos e pela discussão e compreensão das relações de poder em termos de linguagem e história. Uma humanidade que se desenvolve pela conscientização da distorção da própria realidade social e pelo papel que cada um pode ter no rompimento dos condicionamentos sociais, das ilusões e dos mitos que nos impregnam e nos prendem. Uma conscientização, por parte das comunidades, acerca de como elas próprias criam seus significados, que poderá ser favorecedora de uma transformação onde a coesão social, o comunitarismo, a organização podem sair reforçadas.

Considerações finais

A educação, perspetivada a partir das conceções e das práticas da pedagogia crítica e do curriculum trivium, é uma dimensão nuclear no projeto FU. Esta abordagem à praxis educacional concorre para o reforço de uma visão transdisciplinar, sobre os processos educativos e os movimentos sociais e culturais que lhe estão associados. A experiência vivida como educadoras e como investigadoras neste projeto, leva-nos a sustentar que a aplicação do curriculum trivium na prática educativa e na sua análise à luz das categorias que incorpora poderão ser vistos como um exercício da própria transdisciplinaridade. Assim como, a prática da pedagogia crítica constitui um exercício de inter-transculturalidade.

Muito se fez, mas muito há ainda por fazer, para aprofundar os processos culturais e interculturais desenvolvidos. O caráter ainda esporádico de manifestações culturais, como é o caso das apresentações do grupo de batuko, a necessidade de melhorar a organização e comunicação dentro da comissão de moradores, o interesse de desenvolver a relação entre as duas comunidades: piscatória e Bairro, a promoção de uma organização mais coesa da comunidade piscatória são alguns dos eixos a considerar no futuro e que nos levam a estender este projeto no tempo. Por outro lado, o que se alcançou em conjunto é estímulo para nós e outros parceiros alargarem este projeto a outros contextos, envolvendo comunidades em vários países da Europa, baseando-nos no curriculum trivium e numa perspetiva alargada de multi-inter-transculturalidade. Trata-se de “uma visão complexa na qual o inter é um prefixo que precisa ser entendido num sentido amplo que englobe o trans (cultural), mas que se sustente no co(cultural). Pois, se todos prefiguram a existência do Um e do Outro diferente, não se pretende nem uma fusão que anule as diferenças, nem uma interação que as mantenha à distância, mas uma construção colaborativa que aproxima e leva a uma relação autêntica, feita de interdependências” (Caetano et al., não publicado).

Références bibliographiques

Abdallah-Pretceille, M. (2005). L’éducation interculturelle. Paris : PUF.

Caetano, A. P. & Freire, I. (2014). Identités et pratiques culturelles dans un projet d’éducation communautaire. In Louis Basco (dir.), Construire son identité culturelle (181-202). Paris : L’Harmattan.

Caetano, A. P. Trans-inter-multi culturalidade – a poesia como lugar de mediação. (não publicado).

Caetano, A.P.; Freire, I.; Machado, E.; Bicho, L. & Vassalo, S. A voz dos alunos na educação intercultural (não publicado).

D’Ambrosio, U. (2011). Transdisciplinaridade como uma resposta à sustentabilidade. Terceiro Incluído, 1 (1), p.1–13.

D’Ambrosio. (2009). Transdisciplinaridade. São Paulo: Ed. Palas Athena.

D’Ambrosio, U. (1999), Educação para uma Sociedade em Transição, Editora Papirus, São Paulo / Brasil.

Freire, P., (1980). Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,10ª Edição.

Freire, I. & Caetano, A. P. (no prelo). Mediación en el contexto comunitario. Etnografía crítica de un caso. Revista La Trama, Revista interdisciplinaria de mediación y resolución de conflictos.

Mesquita, M. (2014). Fronteiras Urbanas. A dinâmica dos encontros culturais na educação comunitária. Relatório de Progresso 2012-2013. Lisboa: Instituto de Educaçao/FCT.

Morin, E. (2002). Pour une politique de civilization, Arléa Poche, nombre 76, Paris: Éditions Arléa.

Thomas, J. (1993). Doing Critical Ethnography. California: Sage Pub. Co..

Vassalo, S. & Caetano, A.P (no prelo). O papel do diretor de turma na gestão curricular de experiências de educação intercultural na turma do 6ºB. Atas do XXI Colóquio da AFIRSE. Educação, economia e território. Lisboa: AFIRSE.

 

 

 

 

[1]Projet « Frontières Urbaines (Fronteiras Urbanas) : la dynamique des rencontres culturelles dans l’éducation de la communauté », financé par la Fondation pour la Science et la Technologie [référence PTDC/CPE-CED/119695/2010], dont la responsable est Mônica Mesquita, chercheuse en collaboration à l’Institut d’éducation, Université de Lisbonne.

[2] Este texto de apresentação do projeto é bastante próximo de outro sobre o mesmo projeto, já publicado, de autoria duas das presentes autoras (Caetano & Freire, 2014).

[3] Batuko, genre musical originaire de l’île de Santiago, Cap-Vert, dont les éléments sont : le rythme, le chant et la danse. Un groupe de femmes sont assises en cercle. Chaque femme joue un instrument de percussion artisanal, en chantant tous des chansons sur des thèmes quotidiens, sous la direction de la batucadera, la leader du groupe, tandis que d’autres dansent.

 

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